Editado a 27 de março de 2000, faz hoje 20 anos, o álbum “Punishing Kiss” juntou a voz de Ute Lemper a uma série de compositores, num disco que levou novos desafios ao relacionamento entre a canção popular e a música para orquestra. Texto: Nuno Galopim
Muito se tem falado dos cruzamentos entre os universos da música popular e os da clássica. Seja pelas obras de música orquestral de músicos como Johnny Greenwood (Radiohead), Richard Reed Parry (Arcade Fire) ou Bryce Dessner (The National) a investidas de Steve Reicj pela música dos Radiohead ou de Philip Glass pela poética de Leonard Cohen… Isto sem esquecer os diálogos de um Carl Craig, Moritz Von Oswald ou Herbert na série Re-Composed da Deustche Grammophon ou da própria presença de referências desses dois mundos, por exemplo, num disco como He Poos Clouds, gravado por Owen Pallett ainda como Final Fantasy. Esta história de cruzamentos e afinidades na verdade é bem antiga. Zappa gravou com Boulez. Os Deep Purple criaram um Concert For Group and Orchestra. Os Beatles incluíram o rosto de Karlheinz Stockhausen na família de figuras que vemos na capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Em março de 2000, há precisamente vinte anos, uma cantora até aí com trabalho essencialmente feito entre os palcos dos musicais e de discos mais ligados a compositores “clássicos” (o nome é sempre traiçoeiro, sim) do século XX, como Michael Nyman e, sobretudo, Kurt Weill, apresentava um dos mais importantes manifestos de diálogo entre mundos.
Nascida em Münster, na antiga República Federal da Alemanha, em 1963, Ute Lemper começou cedo a cantar e estudou dança (em Colónia e, depois, Viena). Os palcos dos musicais foram a sua porta de entrada numa vida profissional, mas em 1983 gravou um primeiro disco de canções de Kurt Weils que acabaria por definir um rumo preferencial numa carreira que frequentemente foi evocando memórias dos dias de ouro do cabaret… Chegada ao ano 2000 Ute Lemper tinha já uma discografia significativa lançada em várias frentes. É certo que os discos com canções de Weil tinham sido os que mais atenções haviam cativado. E, em 1991, o Songbook de Michael Nyman tinha-a inscrito entre as vozes que assinavam novos passos na criação musical contemporânea. E é por esta altura que dá luz verde a “um desejo antigo”, expressão que ela mesmo usou quando com ela falei há 20 anos numa entrevista que fiz para o DNmais. Contou-me então que o projeto começou por nascer com uma lista de nomes de compositores possíveis, tendo depois solicitado a vários a sua colaboração na forma da escrita de canções. “Foram todos muito rápidos a contribuir e a mostrar o seu interesse”, respondeu na mesma conversa.
Ute Lemper confessava então que ficou surpreendida ao notar que todos eles conheciam já a sua obra. E explicou que nunca havia considerado a sua carreira como um espaço fechado no espaço das canções francesas e alemãs e reconheceu que “dar este passo” não queria dizer “que não voltasse a gravar peças mais clássicas” (o que de facto veio a acontecer pouco depois). Nessa conversa falou-me ainda de figuras da área da música popular que admirava, num leque que ia de Lauryn Hill a Bruce Springsteen, passando por Sting. Ao disco, ao qual chamou Punishing Kiss, chamou contudo nomes como os de Nick Cave, Tom Waits, Elvis Costello, Neil Hannon (dos Divine Comedy), Scott Walker e Philip Glass.
Apesar das diferenças de universos, Ute Lemper reconheceu haver na verdade muitas ligações e afinidades entre as canções que gravou em Punishing Kiss e as obras dos compositores convidados e os ecos das memórias de uma Berlim de outras eras que tantas vezes já cantara, assim como da música de Weil e as palavras de Brecht. De Nick Cave, por exemplo, sublinhou ligações possíveis entre as suas Murder Ballads “e aquele lado cínico e negro de Brecht”. Streets of Berlin, de Philip Glass, que surge a meio do alinhamento, não corresponde a um inédito mas foi, entre as canções propostas pelo compositor norte-americano, aquela que Ute Lemper escolheu. A canção surgiu originalmente em Bent, uma adaptação ao cinema de uma peça de teatro e nessa primeira versão era cantada por Mick Jagger, que aí vestia a pele de um travesti, cantando a noite berlinense. Ute Lemper quis “evitar a réplica desse registo de cabaret” e a leitura que escutamos em Punishing Kiss acaba assim por traduzir o que diz ser “uma Berlim de hoje”, uma “Berlim underground, com uma atmosfera Blade Runner, anónima, desumana” e acrescentou que “tem até um pouco de David Bowie e da Berlim dividida dos anos 70 e 80”.
Os Divine Comedy tiveram um papel marcante no disco já que, não bastando o facto de Neil Hannon (juntamente com Joby Talbot) ter composto The Case Continues (um dos temas centrais do disco), Split e You Were Ment For Me, muitos dos arranjos (como no caso de Little Water Song de Nick Cave) foram trabalhados pelo grupo que, depois, colaborou nas gravações. O próprio Neil Hannon chega ainda a assinar aqui duetos com Ute Lemper. O alinhamento é tão versátil quanto a paleta de cores dos nomes envolvidos, cabendo aos arranjos e à voz de Ute Lemper o desafio de os unir num corpo comum. Isso não impede Scope J, de Scott Walker, de encerrar o desfile de canções com uma nota ímpar ainda mais desafiante que, na edição japonesa, junta ainda uma outra composição sua. Além da banda sonora de Pola X, de Leos Carax, editada em disco em 1999, estas duas canções de Scott Walker representaram raros episódios de revelação de nova música de sua autoria entre o sublime Tilt (1995) e The Drift, disco de 2006 que assinalou o início do seu relacionamento com a 4AD.
O alinhamento de 12 canções corresponde à versão standard do álbum, sendo a japonesa acompanhada por uma faixa extra composta por Scott Walker. Em França houve uma edição com três faixas extra. Uma delas foi Maison Close, versão em francês de Tango Ballad, a única canção de Brecht e Weil que Ute Lemper incluiu em Punishing Kiss. Além desta canção, que surge na forma de um dueto com o francês Arthur H, a edição especial incuia ainda mais duas versões com letra traduzida: L’Affaire Continue e Petite Chanson d’Eau.
Punishing Kiss marcou o seu tempo e juntou públicos. E podemos juntá-lo a a discos como o ciclo Songs For Liquid Days (1986) de Philip Glass, no qual o compositor criou canções sobre poemas de Paul Simon, Suzanne Vega, David Byrne ou Laurie Anderson ou For The Stars, que em 2001 juntou, a soprano Anne Sofie Von Otter a Elvis Costello. São peças de uma história que não acredita em barreiras entre mundos. E a música ganhou sempre que soube ignorar os muros.