O sucessor de “Debut” acentuou o interesse de Björk em explorar caminhos autorais entre a canção pop. O disco conseguiu aliar um evidente caráter de desafio a um momento em que a sua música era escutada nos espaços ‘mainstream’. Texto: Nuno Galopim

O fim dos Sugarcubes tinha colocado novas possibilidades na linha do horizonte. Mas ninguém imaginava, na altura em que o grupo islandês assinalava o ponto final com a edição de um ‘best of’ em 1992, que o futuro de Björk iria transcender em muito os feitos que ali tinham conquistado. O grupo tinha já traduzido na sua discografia uma evolução de formas mais próximas das raízes pop/rock “alternativas” para uma assimilação progressiva de novas ferramentas e formas, valorizando eletrónicas e outras estruturas rítmicas. Mas mesmo assim foi sob surpresa maior que, em 1993, Debut assinalou um passo determinante numa carreira que queria ousar, desafiar e, como o tempo o mostraria, nunca se repetir.
Apesar do valor semântico do disco, Debut não tinha representado uma estreia… Em 1977, ainda criança, Björk tinha já editado um disco em nome próprio mas era de facto algo completamente diferente e, de todo, traduzia um pensamento artístico como o que acabaria por ganhar forma adiante… Debut era como um segundo nascimento. O consequente. E se esteticamente o álbum revelava uma visão pop autoral claramente demarcada (que foi devidamente observada em textos críticos na época), no plano do impacte “popular” o disco excedeu as expectativas, conquistando até galardões de ouro e platina. E na hora de criar um sucessor Björk era necessariamente confrontada com outro cenário. Não que o sucesso pudesse comprometer a música. Mas para criar um novo disco teria de lidar tanto com uma maior expectativa e, ao mesmo tempo, com a possibilidade de ampliar a plataforma de possibilidades de trabalho, tanto na equipa envolvida na música como na criação das imagens.
O processo de criação de Debut tinha deixado claro que viver na Islândia e te colaboradores no Reino Unido não seria a melhor ideia. Pelo que uma mudança de residência, com malas feitas, começou por ser uma das decisões práticas a enfrentar. A Islândia ficava à distância de uma carta… O título do álbum começava a nascer. A ideia inicial de repetir a parceria com Nelee Hooper (com quem trabalhara no álbum anterior) acabou por alargar os horizontes a outras intervenções. Post acolheu assim novos colaboradores, entre os quais Graham Massey (dos 808 State), com quem Björk tinha já registado sessões em 1992 mas que tinham ficado de fora de Debut. Army Of Me, que seria escolhido como single de avanço, vinha desse lote de ideias. A escolha como single vincou a presença de uma música mais tensa e intensa, traduzindo uma atenção a um universo da música eletrónica britânica de então que teve aqui ainda outra expressão através da colaboração com Marl Bell (dos LFO). A estes nomes juntaram-se outros mais, de Marius de Vries ou Tricky a Howie B, criando em Post um universo pop de vistas largas, dos cenários épicos orquestrais às filigranas do trip hop, que hoje podemos recordar em canções que se transformaram em clássicos como Hyperballad, Isobel ou Possibly Maybe. Curiosamente o single de maior impacte extraído do alinhamento de Post coube a It’s Oh So Quiet, uma canção originalmente nascida na Alemanha de finais dos anos 40 que Björk abordou com marcas de memórias de época do swing. Parte do impacte da canção deve-se ao teledisco que Spike Jonze então criou, no qual optou por “escapar” às sugestões de tempo histórico do swing, optando antes por fazer um piscar de olho ao cinema musical francês dos anos 60 (em concreto o de Jaques Demy).
Passados 25 anos conseguimos identificar Post como a segunda parte de um ciclo exploratório de possibilidades para a canção pop que Björk encetara em Debut e que continuaria (sempre sob sinais de mutação) em Homogenic e, de certa forma, conheceria um desfecho em Selmasongs, o disco muitas vezes injustamente esquecido com as canções de Dancer In The Dark de Lars Von Trier (e as canções são o melhor do filme). Logo a seguir Vespertine levaria a música de Björk a outros destinos… E novos detalhes.
Para falar com Björk sobre o álbum Post fui a Dublin no verão de 1995. O álbum já tinha umas semanas de vida, mas aquela era a ocasião para juntar um grupo de jornalistas na capital irlandesa com programa que envolvia um concerto ao vivo, momentos para perguntas e respostas, mal imaginando eu que o “programa” ia envolver uma saída noturna (para dançar) e uma sessão de fotografias coletiva, meio improvisada, nas traseiras do hotel. Sim, aquele foi o dia em que fotografei Björk.
O concerto teve lugar a 12 ou 13 de julho (já não sei exatamente qual a data) no SXF Hall em Dublin, o que corresponde ao arranque de uma longa digressão que se estenderia meses a fio, com várias etapas que correram o mundo. Seguiu-se uma saída noturna que nos levou ao Lilly’s Bordello, onde Björk compareceu, levando ao ombro a sua boombox da qual saía música de Michael Jacskon. No dia seguinte, num hotel no coração da cidade, a conversa (da qual nasceria um artigo para o DN) passou pelo novo disco, pela música que ouve, pela fama, pelos caminhos que a sua obra poderia tomar. Sobre memórias falou, por exemplo, do tal disco que tinha gravado em 1977. “Quando tinha 11 anos gravei um disco. Queriam que fosse uma pop star e logo me tentaram convencer a gravar um segundo, mas não quis. Participei e formei algumas bandas onde tentei sempre ficar na segunda fila das atenções. Depois vieram os Sugarcubes. E era uma anedota porque não nos tomávamos a sério”…
Falou então da fama (e vale a pena lembrar que nos dias de Debut e Post estava no centro das atenções de tudo e todos). Mas, acautelando as ideias, defendeu que o melhor que nos podia dar era “ser verdadeira” consigo própria. E acrescentou: “As pessoas olhavam para mim, pelo que isto de ser observada é coisa que já vem desde os meus dias de criança”. A esta dimensão juntou uma outra, que tem a ver com a busca de um sentido de verdade no que faz: “O meu pai tinha bandas e [quando tinha cinco anos] comecei a ir aos concertos. Habituei-me ao espaço e cedo entendi que em palco devemos, em primeiro lugar, cantar para nós (e não para as cinco pessoas que lá estão connosco). Se, além disto, o entusiasmo for real, é fantástico! É como quando faço música. Escrevo para mim porque se o não fizesse seria um engano”. Adiantou ainda que é firme nas decisões que toma, mas talvez volátil na relação com as formas que vão surgindo: “Canso-me”… E por isso tenta viver as ideias a fundo: “É por isso que as minhas canções são tão diferentes; para não me fartar delas”.
A dada altura olhou para o sentido da sua relação com a música e o futuro que podia ter pela frente: “Estou à procura das melhores canções, e ainda tenho 50 anos para concretizar essa busca. Sei que ainda estou bem longe… Confesso que gostava de ser importante ao ponto de ser capaz de de dizer que estou a transformar a cara da música pop… Ser missionária… Mas não.” Referiu então os nomes que mais admirava e os que tinha escutado nos tempos mais recentes. Passou por Stockhausen, PJ Harvey, Tricky, Black Dog e, ao referir outras músicas e outras geografias, elogiou o álbum Travessia, de Milton Nascimento.
A conversa passou ainda por Londres, que era então a sua casa. “Comecei a fazer o Debut na Islândia mas, pelos condicionalismos da geografia, em pouco tempo arranjei uma relação demasiado dependente do meu fax. Queria que as canções tivessem as cores certas, as palavras certas, tudo certo. O jogo é assim e joga-se em Londres”, referindo sobre a cidade que “a arquitetura e o ambiente forneceram sugestões práticas” para a sua obra e a sua maneira de ser. E assim aconteceu. Para Post mudou-se de armas e bagagens. “Escrevo e vivo em Londres canções que continuo a mandar para a Islândia”, acrescentou. Mas confessou: “Gostaria muito de viver numa ilha pequena, com um pequeno barco. À noite poderia navegar até ao continente e tocar por lá, ou então convidar os meus amigos para fazerem uma visita. Prezo muito as minhas amizades mas prefiro estar com um amigo de cada vez”.
Incrível como tudo isto faz sentido 25 anos depois!

A sessão de perguntas e respostas com Björk em Dublin deu origem a um artigo publicado no suplemento ‘Compacto’ do DN