Juntando temas que foram lançados em formato de single entre 1988 e 1992 pelos KLF e também assinados como The Justified Ancients of Mu Mu e The Timelords, uma compilação reativa o catálogo da dupla Bill Drummond e Jimmy Cauty. Texto: Nuno Galopim

Bill Drummond e Jimmy Cauty eram já figuras com notoriedade, antes mesmo dos “casos” de samples não autorizados do primeiro disco que haviam lançado sob a designação The Justified Ancients Of Mu Mu (em 1987). Drummond havia conquistado visibilidade na cena musical de Liverpool. Tinha sido manager dos Teardrop Explodes e Echo & The Bunnymen, tocara nos Big in Japan e fundara a Zoo Records e chegou a trabalhar na Warner. E foi nessa etapa que, como A&R, assinou os Brilliant, trio onde então se encontrava Jimmy Cauty. Mas ao chegar à idade de 33 anos e um terço (o valor da velocide de rotação dos LP) abandonou a indústria para encontrar um caminho. E ao lado de Jimmy Cauty lançaram as primeiras etapas de um percurso artístico (recentemente reativado no plano musical) que transcendeu sempre as lógicas e rotinas mais frequentes da cultura pop/rock para juntar à sua intervenção e comunicação formas e estratégias situacionistas, com manifestos e o que mais entendessem criar a cada nova intervenção.
Aceitando uma ideia de obra em constante transformação (estendendo-se a mutação aos próprios nomes) que então ganhava forma na nova cultura da música de dança, depois de primeiras manifestações como The Justified Ancients Of Mu Mu surgem em 1989 como KLF (iniciais para Kopyright Liberation Front). Meses depois editam em Chill Out um disco que acabaria transformado numa referência de uma nova geração de estetas ambient. O disco propunha, sob uma ideia conceptual, uma viagem de comboio entre o Texas e o estado de Louisiana, ilustrando o avanço das paisagens e o evoluir do trajeto através de vários sons que assim reúne num todo com sentido novo, cruzando-se depois os samples com música original. Esta experiência ambient teve continuidade quer no projeto Space (de Cauty que, por essa altura, cria também em paralelo os The Orb, juntamente com Alex Patterson).
Mas mesmo sob essas visões complementares, o percurso a dois continuou e ficou-se na identidade que tinham começado a talhar como KLF, porém voltando-se para os espaços mais próximos da música de dança que tinham experimentado numa primeira versão de What Time Is Love, lançada em 1988 pouco depois da breve experiência criada sob o nome The Timelords, que lhes deu um inesperado single de sucesso com Doctorin’ The Tardis, canção que evocava memórias da série televisiva de ficção científica Dr. Who e, de certa forma, lançava as bases de uma música eletrónica “cheia” de acontecimentos cenográficos que, pouco depois, explorariam em discos com uma carga épica que seriam descritos como “stadium house”.
A ideia, na origem, era a de criar uma banda sonora para um filme… O orçamento não se compôs e acabaram nas mãos com uma série de temas já compostos que, durante algum tempo, ficaram à espera de oportunidade para conhecer novo destino. Alguns dos inéditos criados para o filme nunca realizado acabaram depois, juntamente com alguns dos singles da série “pure trance” entretanto editados, reunidos num álbum a que chamaram The White Room. O disco, embora sem seguir a matriz conceptual de Chill Out, não deixa de revelar uma certa ordem narrativa entre os temas, tendo então gerado um dos raros acontecimentos nascidos da geração acid house na forma de álbum. Um marco na discografia que emergiu após a revolução que a club culture conheceu em finais de 80, The White Room é não apenas o momento maior da obra dos KLF, como um título fundamental na história da dance music.
E entre 1988 e 1992, numa série de edições, cada qual trazendo sempre uma nova abordagem à composição (entre remisturas e regravações), os KLF fizeram de What Time Is Love? um tema tão marcante que hoje é referência incontornável na história da música de dança. A versão original mostrava uma composição eletrónica diretamente nascida em clima acid house. Na capa lia-se a expressão “pure trance”, numa altura em que a identificação da palavra “trance” com o género que depois nasceria ainda estava longe de ser frequente. What Time Is Love? foi, na segunda versão (em 1990, sob a designação What Time Is Love?: Live At Transcentral) o tema que elevou os KLF de fenómeno underground a um “caso” de inesperada popularidade mainstream. Uma última versão, America: What Time Is Love?, em 1992, anunciou o afastamento do grupo da cena musical. Entre a primeira e esta visão de 1992, que envolve jorros de guitarras e uma composição vocal de dimensão algo operática, os KLF vivem uma etapa de grande visibilidade e sucesso, durante a qual editam os singles 3 AM Eternal, Last Train To Transcentral e Justified and Ancient, este com a contribuição vocal de Tammy Wynette, uma estrela da música country. À música, com uma dimensão plástica que entretanto acrescentara também elementos da cultura hip hop, os KLF juntavam um trabalho em vídeo que sublinhava visões cinematográficas onde nonsense e mitologias ajudavam a cimentar a identidade de uma obra. Apesar de editado em 1991 sob o nome The Justified Ancients Of Mu Mu, o single It’s Grim Up North na verdade integra-se plenamente neste mesmo quadro artístico. Mas em 1992, depois de uma performance “radical” partilhada com os Extreme Noise Terror (com quem editam uma versão hardcore de 3AM Eternal) durante a gala de entrega dos Brits, o duo anunciou inesperadamente a saída de cena, descatalogando então toda a sua discografia. Deles ouviu-se depois falar mais de happenings como aquele momento em que queimaram um milhão de libras. E só pontualmente regressaram aos discos, ora para lançar uma versão de Que Sera Sera, com o Coro do Exército Vermelho, em 1993 e, em 1997, como 2K, editar Fuck The Millenium (uma canção/acontecimento com quase 14 minutos, em clara afinidade com a obra dos KLF de 1988 a 92, citando o seu What Time Is Love).
Pouco depois de ter surgido nos festivais de cinema um documentário sobre uma iniciativa à la KLF lançada recentemente pela dupla Drummond / Cauty em Liverpool, eis que, inesperadamente, a sua música volta a dar sinais de si. E o primeiro episódio do que poderá ser uma reativação dos KLF manifesta-se na edição (para já apenas digital) de uma compilação que junta singles editados entre 1988 e 1992, incluindo não apenas obra editada como KLF mas também como The Justified Ancients Of Mu Mu e The Timelords. Solid State Logik 1 é assim um aperitivo para um reencontro que poderá não só voltar a fazer do catálogo uma força presente (resta saber se apenas em suportes digitais), podendo juntar novos elementos, ou de arquivo ou mesmo novas criações. Estejamos atentos… Agora uma questão: será a visão anarca e situacionista da cultura pop dos KLF tão marcante para o século XXI como o foi na passagem dos anos 80 para os 90? Veremos…
“Solid State Logik 1”, dos KLF, está disponível nas plataformas digitais numa edição da KLF Communications.
Agora uma questão: será a visão anarca e situacionista da cultura pop dos KLF tão marcante para o século XXI como o foi na passagem dos anos 80 para os 90? Veremos…
Duvido. Até porque a própria indústria da música já não tem a mesma cara e os KLF surgiram numa altura em que ainda existia algo próximo de uma monocultura – e digo “algo próximo” porque a formatação em nichos começou a calibrar em pleno mais ou menos por aquela altura. E se é verdade que os hábitos de consumo já não são tão “tribalistas” como já foram, a verdade é que também é mais difícil centralizar atenções agora – pode-se ser #1 nas tabelas oficiais de popularidade e haver um segmento significativo da populaça que não faz a mínima de quem os artistas em causa sejam, algo que (ainda) não acontecia quando os KLF estavam no auge.
Posto isto, bem que podia haver uns malucos quaisquer que pegassem no espírito deles e agitassem isto. O mais próximo que tivemos disso acontecer parece-me que mesmo a Lady Gaga há dez anos!
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Precisamente, daí a questão que deixo em aberto. Já recentemente, ao ver do documentário senti que as ideias estavam apenas a comunicar aos velhos admiradores e que, dificilmente, teriam expressão consequente no quadro atual do que é fazer intervenção artística.
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Até porque, à sua maneira, plataformas como o TikTok, o YouTube ou o Switch acabam por ser um pouco o realizar de algumas das visões mais, dira, democratizadoras que os KLF preconizavam – basta lembrar alguns dos pontos defendidos no célebre livro que detalhava como obter um #1 no top britânico da maneira mais fácil.
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