Este é o número 67 da lista “100 Discos Daqueles que Raramente Aparecem nas Listas”…   Editado em 1983 mostrou ousadia numa abordagem ao flamenco que vincava a presença de eletrónicas em sintonia com os rumos da pop da época. Texto: Nuno Galopim

De origem sevilhana, então com 21 anos, mas já com discos lançados desde 1978, Remedios Amaya levou à edição de 1983 do Festival da Eurovisão uma canção diferente. Fruto de uma mudança de orientação sugerida pela direção da RTVE, Espanha propunha a abertura de janelas sobre novos géneros que estivessem a ganhar forma no panorama da sua música popular. E as novas ideias que então começavam a surgir em torno do flamenco apontaram a escolha à jovem cantora que então foi a primeira de etnia cigana a subir a um palco da Eurovisão. E ali levou “Quién maneja mi barca?”, da autoria de José Miguel Évoras e Isidro Muñoz, canção apresentada com um arranjo desafiante que integrava a presença de alguns elementos eletrónicos que seriam contudo mais evidenciados na versão de estúdio fixada no disco. A noite na Eurovisão terminou com zero pontos, mas algo novo, distinto e visionário acabara de acontecer. Passaram anos até que, sob vozes de uma nova geração (em particular Rosalía), as visões de diálogos possíveis entre o flamenco e uma modernidade pop e electrónica conquistaram atenções maiores em palcos internacionais (convenhamos que o sucesso de uns Gipsy Kings passou longe destas visões). Inclusivamente na Eurovisão (como o fez Blanca Paloma em 2023). Mas foi com Remedios Amaya que, para lá das suas fronteiras, esta música gerou reações a uma escala maior.

“Quién maneja mi barca?” não era um ato isolado. Tanto que, salvo a abordagem mais canónica em “Tangos de La Fronteira”, todo o alinhamento de “Luna Nueva”, álbum que Remedios Amaya apresenta ao mesmo tempo que a canção que levou à Eurovisão (e que de resto abre o alinhamento do lado A), segue a mesma lógica de busca de caminhos entre uma nova modernidade pop, vincada pela presença das electrónicas, e o canto claramente alicerçado nas tradições do flamenco. O disco traduz uma atitude de liberdade e busca de possibilidades, procurando vários caminhos, desde abordagens instrumentais mais próximas das sonoridades das canções pop de então, como se escuta em “Querer” ou “Como el Agua de la Fuente”, ou por caminhos minimalistas mais exploratórios como os que moldam “Que Si, Que No”.

A obra de Remedios Amaya já abria janelas para presenças de elementos para lá dos timbres mais tradicionalmente ligados ao flamenco tanto no álbum de estreia “Remedios Amaya” (1978) como no seguinte “Cantaram Las Estrellas” (1980). Eram todavia elementos discretos nas cenografias, pontuando momentos nos arranjos e, mais frequentemente, na presença de bateria. “Luna Nueva” respirou uma ousadia maior, em sintonia com uma nova cena pop que traduzia ecos de uma movida que começava marcar culturalmente o país. O disco traduziu contudo um episódio sem projeção maior na obra da própria cantora, mostrando o seguinte “Seda En Mi Piel” uma relação mais convencional (não confundir com tradicional) entre o canto os instrumentos. O hiato que então afastou a cantora dos discos até finais dos anos 90 revelou, depois, uma transição para abordagens mais clássicas. O episódio breve que “Luna Nueva” fixou inscreveu, apesar de quase esquecido, um quadro de visões que hoje podemos localizar entre as raízes de uma mais vasta presença de cruzamentos entre ecos de tradições e novas formas musicais na música popular espanhola. Vale a pena regressar a este disco, mas na versão original em vinil, já que o CD (de 1986) apresentou um alinhamento diferente. 

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