Publicado meses depois do seu desaparecimento, “Outra Autobiografia” foca atenções nos meses que se sucederam ao diagnóstico de um cancro e acentua sobretudo o retrato humano de uma das maiores figuras da história do rock cantado em português. Texto: Nuno Galopim

Depois de publicada “Uma Autobiografia” (lançada no Brasil em 2016 e entre nós em 2017), Rita Lee acolheu outro exercício retrospectivo, desta vez sob desafio do MIS – Museu da Imagem e do Som (em São Paulo), que conheceu inauguração em 2021, em plena pandemia. É por alturas da preparação da exposição, que ganharia forma sob o nome “Rock Exhibition Rita Lee”, que começa a narrativa de um segundo volume autobiográfico que, contudo, em nada procura acrescentar olhares ao que o primeiro e a própria exposição tinham por objeto. Feito de textos curtos, na mesma linguagem pessoal e direta, criativa, imaginativa, que conhecíamos já do primeiro volume (e até mesmo da série documental editada na caixa de DVD “Biografitti”, de 2007), “Outra Biografia” foca contudo atenções numa série de acontecimentos inesperados que marcaram os últimos anos de vida da cantora. Diagnosticado após uma das ocasiões de vacinação contra a Covid 19, o cancro, que acabaria por ser a causa da sua morte, entrou súbita e implacavelmente na vida de Rita Lee. E todo este volume acompanha os primeiros meses de um quotidiano partilhado om a doença, encarando-a com o mesmo sentido positivo de quem logo reconheceu que tivera, até ali, uma vida em pleno.

Os curtíssimos capítulos observam as novas rotinas e acontecimentos de um dia a dia transformado. As fragilidades do corpo, o esforço para ultrapassar as dificuldades encontram aqui um relato invulgarmente luminoso, mais feito de uma vontade em partilhar do que em tentar exorcizar medos de um eventual futuro mais sombrio. A família (ou harém masculino, como ela mesma refere), as enfermeiras, os animais, têm aqui os papéis de maior protagonismo, com a casa como cenário dominante, aos remédios, ao hospital, à quimioterapia ou à fisioterapia sendo dado um espaço que raramente habita narrações das histórias de vida de músicos. A música, mesmo assim, não fica de fora. Há ainda um relato de um sonho que a leva ao Copacabana Palace nos anos 40, com Carmen Miranda em campo. Há palavras sentidas escritas na morte de Elza Soares. E, claro, a exposição no MIS. Mas, acima de tudo, a confirmação da comunicação de uma franqueza rara, uma segurança invulgar, uma boa disposição inabalável. Um complemento, intenso, mas tranquilo, que aprofunda o retrato pessoal que, mesmo entre as memórias dos Mutantes, dos Tutti Frutti ou dos seus feitos a solo, Rita Lee havia já partilhado connosco na primeira parte deste volume de relatos e pensamentos. 

“Outra Autobiografia”, de Rita Lee, é um volume de 176 páginas publicado em Portugal pela Contraponto. 

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