Editado a 3 de agosto de 1973 “Innervisions” não só traduz sinais de um processo exploratório na música como reflete sobre realidades sociais e políticas do seu tempo. É obra maior na discografia de Stevie Wonder e hoje representa um clássico dos anos 70. Texto: Nuno Galopim

O panorama da música soul estava a viver evidentes sinais de mudança desde o final da década de 60, reflexo quer da evolução das formas musicais e das possibilidades de trabalho em estúdio, mas também sobretudo de um mapa social norte-americano a conhecer desenvolvimentos na já longa luta pelos direitos civis (embora ainda longe de conquistar uma visibilidade mediática maior, como se viu pelo quase apagamento da memória do Harlem Cultural Festival recentemente redescoberto no documentário “Summer of Soul”). É marcante neste contexto o salto “quântico” apresentado em 1971 em “What’s Going On” de Marvin Gaye, lançado pela mesma editora à qual estava ligado, desde o início, o jovem Stevie Wonder, um quase veterano dos discos já que, por essa altura tinha já editado 15 álbuns (alguns deles gravados ao vivo), o primeiro surgido quando tinha apenas 12 anos, apresentando-o como… Little Stevie. Lançado poucas semanas depois, “Where I’m Coming From” acentuava uma progressiva rota de libertação face ao poder artístico em tempos sobre si exercido pelo “patrão” Berry Gordy, assumindo plena e definitivamente as rédeas da produção, amplificando assim a presença de uma voz e visão diferentes que haviam começado a emergir em 1968 no álbum “For Once In My Life”. “Where I’m Coming From” fechava um contrato inicial com a editora, sendo um novo negociado já na sequência destes episódios de mutação, desenhando-se então um processo de clara transição que abriu portas a discos transformadores como “Music of My Mind” (1972) e “Talking Book” (1972), que abrem definitivamente portas aos sintetizadores e a uma demanda temática mais abrangente, atenta ao contexto político e social que servia de berço a esta música. É neste quadro de transformações em curso que, em agosto de 1973, é editado o clássico “Innervisions”, álbum que toma já todas estas movimentações como assimiladas e parte, livre, rumo a visões que ganham forma numa impressionante coleção de novas canções, abrindo espaço para uma invulgarmente fértil etapa na qual nasceriam títulos igualmente lendários como “Fulfillingness’ First Finale” (1974) e “Songs in the Key of Life” (1976), ambos, juntamente com o disco que agora celebra 50 anos de vida, tendo conquistado o Grammy de Álbum do Ano.

Obra criada sob total domínio do processo criativo, da escrita à produção, “Innervisions” abre o leque de referências musicais a horizontes que cruzam vários géneros e aprofunda as experiências instrumentais ensaiadas nos dois álbuns anteriores, envolvendo o trabalho de uma pequena que permitiu usar e desenvolver as potencialidades do chamado T.O.N.T.O., iniciais de The Original New Timbral Orchestra, na verdade, um sistema que juntava vários sintetizadores então revolucionários e que implicava a presença inevitável dos dois engenheiros de som que o estavam a desenvolver. Emergem assim pistas que abrem caminhos que a música explora neste álbum, lançando possibilidades que se transformariam em referência em muitas experiências futuras nas várias frentes do rhythm and blues. Apesar de toda esta carga exploratória, o álbum é feito de canções de linhas firmes e acessíveis, desafiantes mas afinal irresistíveis e fáceis de assimilar, gerando episódios de sucesso como “Higher Ground”, “Living In The City” ou “Don’t You Worry ‘Bout a Thing”. Todo este quadro inventivo e sonhador em nada abafou então a presença de uma relação bem firme com o plano da realidade, mostrando as canções uma sucessão de quadros e reflexões sobre o seu tempo, abordando questões que vão da xenofobia ou do consumo drogas ao quotidiano da vida urbana na América daquele tempo, olhando ainda o mapa político daquele momento em “He’s Misstra Know-It-All”, uma das canções desta etapa na obra de Stevie Wonder que abertamente criticam a administração Nixon. Cinquenta anos depois “Innervisions” é reconhecido não apenas como um dos títulos-chave da etapa mais criativa da obra de Stevie Wonder mas também um álbum de impacte global, tanto que é presença habitual em listas que procuram traduzir o melhor da história da música gravada. 

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