Para não gastarmos grandes ziguezagues com descrições e mais adjetivos, começo por deixar bem claro: “Meu Côco” é um dos melhores álbuns da extensa (e sempre interessante) discografia de Caetano Veloso. Surgiu em 2021, nove anos depois do seu anterior disco de estúdio, durante esse hiato tendo surgido sobretudo discos gravados em palco e, na maior parte dos casos, parcerias com outros companheiros das mais variadas gerações e proveniências musicais. O álbum teve como um dos seus motores criativo uma pulsação com apelo de urgência que acabou traduzida na magnífica canção “Anjos Tronchos”, na qual Caetano comenta o mundo em desequilíbrio e tumulto que via ao seu redor. E, no dia em que o disco nasceu para os ouvidos de todos nós, ele mesmo comentou através das suas redes sociais: “Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor? Negligência crítica? Deve ser. Mas acontece que, desde a infância, amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação”. E então revelou que dois anos antes havia sentido “um desejo intenso de gravar coisas novas e minhas” e que “tudo partiu de uma batida no violão que me pareceu esboçar algo que (se eu realizasse como sonhava) soaria original a qualquer ouvido em qualquer lugar do mundo”. O silêncio fez-se som. E ficámos todos a ganhar, convenhamos.
Apesar do hiato de nove anos, o disco surgiu entre os ecos desafiantes explorados com a sua mais recente banda, com a qual gravara os álbuns de estúdio “Cê” (2006), “Zii e Zie” (2009) e “Abraçaço” (2012), bem como as respetivas manifestações em palco, todas elas também já fixadas em disco (e aqui abre-se desde já o apetite para que a presente digressão possa vir a conhecer semelhante destino a bem da continuação da construção de uma memória futura). Com um novo grupo de músicos e uma extensa lista de convidados, entre os quais Jacques Morelembaum, Vinicius Cantuária, Zé Ibarra, os três filhos ou o guitarrista Pedro Sá (da anterior banda Cê), tendo como um dos principais colaboradores o carioca Lucas Nunes (que integra os Bala Desejo), “Meu Côco” ganhou forma voltando a ativar o explorador de palavras e sons que conhecemos em Caetano Veloso ao longo de toda a sua obra (e de resto tem sido por isso consequente a presença de uma pontual memória do desafiante “Araçá Azul”, de há 50 anos, em alguns dos alinhamentos da presente digressão).
Acompanhado agora não apenas por Lucas Nunes Lucas Nunes (violão, guitarra, teclas), Alberto Continentino (baixo), Rodrigo Tavares (teclas), Kainã de Jêje (bateria e percussão) e Thiago da Serrinha (percussão), Caetano Veloso regressou à estrada numa digressão de músculo (criativo e instrumental) que começou a dar primeiros passos sul-americanos e agora chega à Europa apresentando uma proposta que, mesmo centrada na identidade de “Meu Côco” e de não representar uma proposta ‘best of’, não deixa de visitar vários momentos, caminhos e memórias de todo o seu percurso, vincando episódios de atenção para com a poesia de Augusto Campos (no belo poema visual “Pulsar” que assim ganha corpo de palco) ou de homenagem à grande amiga Gal Costa, cantando o histórico “Baby” (um dos hinos do tropicalismo) no qual nasce uma citação do clássico “Diana” de Paul Anka que acaba transformado em… “baiana” nas notas finais.
Se peças novas como “Anjos Tronchos”, “Sem Samba Não Dá” ou “Ciclâmen do Líbano” confirmam a inquietude criativa que conduziu a este reencontro, já reencontros com clássicos como “Sampa”, “Itapuã”, “O Leãoizinho”, o “Menino do Rio” (que deu a Baby Consuelo), o irresistível “Reconvexo” (que Bethânia começou por gravar) ou a memória recente da etapa vivida com a banda Cê no intenso “A Bossa Nova É Foda”, ajudam a entender uma vez mais como, a partir de um mote distinto, Caetano Veloso encontra novos caminhos entre a sua obra. A passagem por Lisboa permitiu fazer a estreia em palco de “Você Você”, dueto com Carminho que, na noite de domingo, ficou ainda em palco para recriar o histórico “Os Argonautas” numa versão que bem que podia continuar a viver em palco e em discos futuros da fadista. A noite fechou em clima de celebração, depois do suave “Mansidão”, com os festivos “Odara” e “A Luz de Tieta”. Nos “Anjos Tronchos” Caetano canta: “agora a minha história é um denso algoritmo”. Mas é na sua mão que está ainda o comando das operações.

A preparar a chegada de Caetano Veloso, o episódio desta semana do Gira Discos fez um percurso pela discografia do músico, escolhendo uma seleção de canções em vários dos seus discos gravados ao vivo:
Aqui fica o alinhamento do episódio:
1. Caetano Veloso + Moreno Veloso + Zeca Veloso “Alegria Alegria”
2. Caetano Veloso + Chico Buarque “Os Argonautas”
3. Caetano Veloso + David Byrne “Sampa”
4. Caetano Veloso “Terra”
5. Caetano Veloso “Os Mais Doces Bárbaros”
6. Caetano Veloso “Cucurucucu Paloma”
7. Caetano Veloso “Let’s Face the Music and Dance”
8. Caetano Veloso “Two Naira Fifty Kobo”
9. Caetano Veloso “Maria Bethânia”
10. Caetano Veloso “Bossa Nova É Foda”
Podem escutar aqui.





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