É uma história de ficção, mas durante a qual se dizem muitas verdades. A descrição é do próprio Nick Cave, no making of que podemos ver na edição em DVD de “Nick Cave: 20.000 Dias na Terra”, filme de 2014 que elevou a um novo (e bem estimulante) patamar o gosto do cinema por contar histórias das gentes da música. Se os making of por vezes destapam o que até ali vivia velado, revelando o que está para lá das cordas que fazem mexer as marionetas, a verdade é que também nos ajudam a compreender melhor o objeto da atenção dos filmes. E neste caso em particular como do que poderia ser um simples documentário sobre a gravação de um disco acabou por nascer um filme que está a meio caminho entre o músico e a obra, a construção de ficção andando ali de mãos dadas com a realidade, sem nunca perder de vista a mitologia que qualquer artista acaba inevitavelmente de criar em torno de si e do seu trabalho.
O relacionamento de Nick Cave com os realizadores era antigo, uma vez que tinham já assinado o teledisco para “Dig Lazarus Dig!!!” (2007) de Nick Cave & The Bad Seeds e colaborado no documentário em 14 partes “Do You Love Me Like I Love You”. Antigos colegas na Goldsmiths (em Londres), Ian Forsyth e Jane Pollard, tinham até este momento vindo a criar uma obra essencialmente feita de curtas-metragens, algumas delas projetadas desde logo para espaços diferentes dos mais habituais numa sala de cinema, destinando-as a galerias e museus (o seu filme “Anyone Else Isn’t You”, de 2005, integra de resto a coleção da Tale). Esta foi a sua estreia nas longas-metragens. E dos jogos de confiança e entendimento entre a dupla de cineastas e Nick Cave nasceu um objeto invulgar, que reinventa a forma de encarar as entrevistas não como um mero exercício de diálogo mas como parte de uma narrativa, usando estratégias de surpresa da parte daqueles que colocam as questões.
O filme encena o dia número vinte mil na vida de Nick Cave. Encena, sim. O escritório em que o vemos a trabalhar não é o seu. É um cenário pensado ao detalhe mas onde Nick Cave se senta a escrever como o poderia fazer no seu espaço habitual de trabalho. O arco narrativo corre ao longo do dia vinte mil. Mas os que ficaram para trás não se esgotam na montagem apresentada em ecrãs de televisão que vemos durante o genérico. Na verdade tudo o que acontece no dia vinte mil é o resultado desse com a soma dos 19.999 que o precederam. Entre solilóquios de carro, conversas com colaboradores – atuais ou antigos – como Blixa Bargeld, Warren Ellis (entre as enguias que serão o almoço) ou Kylie Minogue ou diálogos com o psicólogo ou arquivistas, ou momentos com os filhos que hoje traduzem memórias de um tempo de felicidade familiar que a tragédia depois ceifou, Nick Cave mais não faz senão refletir ali sobre quem é e o que tem feito, como se de uma autobiografia com imagens se tratasse. Ao mesmo tempo as imagens captadas durante ensaios e gravações de “Push The Sky Away” (o sublime álbum de 2013 de Nick Cave & The Bad Seeds), juntamente com uma sequência registada ao vivo, ao som do pungente “Jubilee Street” (e nota aqui para o trabalho de montagem que cruza ali elementos de várias épocas como que a concentrar toda uma vida em palco numa canção) juntam o texto musical ao contexto da obra de que se fala.
O filme “Nick Cave: 20.000 Dias na Terra” teve edição em DVD entre nós.





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