Foi em 1990, em tempos da célebre (e marcante) Blonde Ambition Tour que Madonna encontrou e fixou um modelo teatral pelo qual passou a moldar os alinhamentos das suas digressões, dividindo as canções em quadros cénica e musicalmente distintos entre si, muitas vezes separados por episódios de ligação pensados para diálogos entre coreografias e vídeos. Na anterior Madame X Tour juntou a este modelo uma dimensão mais teatral (ou mesmo operática), explorando com outro detalhe as relações possíveis de estabelecer entre as canções, a dança e as imagens em vídeo com uma cenografia mais carregada de detalhes (expressão da dimensão de menor escala das salas que acolhiam o espetáculo) e uma lógica narrativa mais marcada, criando momentos mais próximos do teatro musical do que do “clássico” concerto pop/rock. Agora, neste 2023 que assinala a passagem de 40 anos sobre o lançamento do seu álbum de estreia, e regressa à estrada com uma digressão de celebração dessa data redonda, eis que encontra em palco uma síntese de todas estas ideias e percursos, num concerto que aposta na construção de um tutano narrativo para, através de canções, contar uma história de vida.
Tal como sucedera em 2020 na passagem pelo palco das várias vidas de Madame X, a multiplicação de Madonnas (sobretudo evidente na sequência final com todos os bailarinos a envergar figurinos que evocam episódios marcantes da carreira da cantora), marcou todo o percurso narrativo do concerto, ora servindo-se das imagens criadas para os vários ecrãs de vídeo (alguns deles a surgir e desaparecer em várias ocasiões sobre a arena), ora em cenas de teatro, depois em recriações de quadros que evocam telediscos (como o ghettoblaster que servia de fundo a “Hung Up” ou o mood em tons Western de “Don’t Tell Me”), abrindo ainda momentos para várias homenagens – de Prince e Michael Jackson, de David Bowie ou Nina Simone, a uma interpretação de “Live To Tell” pensada para lembrar as muitas “luzes” que a Sida levou demasiado cedo, a Ball Culture a que ela mesmo deu visibilidade, naturalmente ao som de “Vogue” (que levou ao patamar mainstream uma expressão da cultura queer nova-iorquina dos anos 80 e uma série de imagens e palavras que ora vincam toda uma obra e postura sempre em sintonia com várias lutas (homofobia, transforma, xenoboia), afirmando sempre uma ideia comum: sem medo. Política, portanto, como sempre. Porém, desta vez com todo este texto apresentado no contexto.

Entre memórias da chegada a Nova Iorque em finais dos anos 70, a figura da mãe, a presença em palco de alguns dos filhos, revistando clássicos que foram dos primeiros dias ao som de “Everybody”, “Holiday” ou “Burning Up” (esta a lembrar uma passagem pelo CBGB), depois passando por casos de sucesso dos oitentas como “Into The Groove”, “Open Your Heart”, “Crazy For You” ou “Like a Prayer”, ou destacando com merecida justiça a por vezes mais esquecida primeira metade dos noventas com “Justify My Love”, “Erotica”, “Fever”, “Bad Girl” (esta pela primeira vez a habitar o alinhamento de uma digressão) ou “Bedtime Stories”, avançando depois para a viragem do milénio entre “Ray Of Light”, “Nothing Really Matters” ou um reencontro com “Don’t Cry For Me Argentina” (que cantou em “Evita”), chegando então ao século XXI lembrando a canção que deu a James Bond ou ainda “Bitch I’m Madonna” ou, como pede o nome da digressão, “Celebration”. Falou muito, em duas ocasiões, sobre a etapa de vida que passou em Lisboa, acrescentando em exclusivo ao alinhamento uma versão, para voz e guitarra acústica de “Sodade” (de Cesária Évora), seguindo-se uma versão em tom semelhante de “I Will Survive” de Gloruia Gaynor, piscares de olhos às canções e músicas dos outros que incluíram citações aos Chic e Ennio Morricone ou o “Billie Jean” de Michael Jacskon, num mashup com o seu “Like a Virgin” apresentado num jogo de silhuetas como quem diz, sem dúvidas: eis o rei e rainha da pop.
Notas finais, além da exuberância técnica da produção, a cenografia elaborada, o trabalho notável de encenação, figurinos, coreografia (agora mais focada nos bailarinos do que na protagonista) ou vídeo, para o modo como, sob a batuta de Stuart Price, Madonna apresentou um olhar transversal sobre a sua obra frequentemente apostando em novas abordagens nos arranjos (e até mesmo estrutura) das canções. No fim uma certeza: este era um espetáculo apenas possível 40 anos depois. E, naturalmente sem esquecer que vivemos num mundo a passar por momentos turbulentos, a celebração aconteceu.





Deixe um comentário