Apesar do silêncio discográfico que caracterizara os primeiros anos da ligação de António Variações à editora que o chamou ao seu catálogo ainda em finais dos anos 70 – e continua ainda por conhecer a luz do dia o registo da mítica sessão de trabalho que o poderia ter apontado a um rumo mais próxima do folclore ou da canção ligeira – os meses que viveu entre 1982 e 1983 levaram o cantor, então já com 38 anos, a um patamar de rara unanimidade e popularidade. O single de estreia “Estou Além” / “Povo Que Lavas no Rio”, que tanto inscrevera um episódio marcante na história das electrónicas na pop nacional e levantara um importante debate sobre a criação de novos pontos de vista sobre o fado, colocara nas bocas do mundo o mesmo vulto do qual havia memória de uma fugaz atuação ao som de “Toma o Comprimido”, mas então sem consequência discográfica, ocorrida um ano antes, no “Passeio dos Alegres”, de Júlio Isidro, na RTP. Meses depois desse single, o álbum “Anjo da Guarda” (1983), gravado com contribuição de vários, músicos, entre os quais Vitor Rua e Toli César Machado (que integravam os GNR) ou José Moz Carrapa, fixava definitivamente uma visão pop diferente que valeu aquela frase lapidar que acabou definitivamente associada a António Variações: entre Braga e Nova Iorque. Seguiu-se um ano intenso na estrada, de Norte a Sul, concerto atrás de concerto, circulando pelos mais diversos palcos e lugares, sublinhando a narrativa de adesão à sua música e figura que cruzava gerações, geografias, rompendo os habituais padrões de gosto nestas coisas da música popular.

Era então chegada a altura de criar o passo seguinte. E, partindo de canções trabalhadas em casa, naquelas mesmas maquetes criadas com voz, microfone, palminhas e gravador de cassete, ocasionalmente com acompanhamento ou de um pequeno teclado ou uma guitarra (chamando aí um dos músicos com quem se apresentava em palco), surgiu um corpo de trabalho do qual partiu uma mão cheia de canções para uma nova etapa de gravações em estúdio. Convém sublinhar aqui o que só acabaríamos por “descobrir anos mais tarde”, ou seja, canções como “Tu Aqui”, “Já Não Sou Quem Era”, “A Teia”, “A Culpa é da Vontade”, “Mudar de Vida”, “Maria Albertina”, “Gelado de Verão”, entre outras mais adiante gravadas por Lena d’Água ou os Humanos ou até mesmo a “Guerra Nuclear” recentemente recriada por Mariza Liz, estavam registadas, igualmente na forma de maquetes de trabalho, já entre a coleção de cassetes que o próprio António Variações guardava em casa. Pelo que terão sido preteridas ou nem sequer consideradas para rumar ao segundo álbum. De resto, além das nove canções que acabaram no alinhamento de “Dar e Receber”, em estúdio foi apenas concluída uma décima faixa, “Minha Cara Sem Fronteiras”, que acabaria acrescentada ao alinhamento de uma reedição em CD no ano 2000.

As sessões de trabalho decorreram nos estúdios de Paço de Arcos em fevereiro, num tempo em que começavam a tornar-se evidentes algumas dificuldades respiratórias de António Variações. Com ele estavam desta vez convidados como Eugénia Lima (acordeão) e Paulino Vieira (guitarra) e, como banda de apoio a toda a gravação, elementos dos Heróis do Mar: Paulo Pedro Gonçalves, António José de Almeida, Carlos Maria Trindade e Pedro Ayres Magalhães, com estes últimos a assumir a direção musical e produção. Em relação a estes últimos vale a pena lembrar que estava entre amigos já que, poucos anos antes, ainda em finais dos anos 70, António havia passado por uma audição para o lugar de vocalista dos Corpo Diplomático, a banda cujo fim abriu caminho ao núcleo fundador dos Heróis do Mar. E Rui Pregal da Cunha, a voz dos Heróis do Mar, que viveu de perto os ensaios que precederam estas sessões, chegara a ser convidado (embora não tenha podido comparecer) para acompanhar António, juntamente com Dino, para a célebre atuação no “Passeio dos Alegres” em 1981. 

Quem acompanhou de perto as gravações recorda o esforço físico do cantor e o modo como as emoções por vezes o tomavam, sobretudo quando cantava “Deolinda de Jesus”, canção que dedicou à mãe. Em vinte e poucos dias o disco estava concluído, incluindo o seu alinhamento o festivo “Quem Feio Ama” (que voltava a acentuar a tónica folclorista), os assertivos “Erva Daninha Alastrar” ou “Que Pena Seres Vigarista” (ambas na linha das suas observações sobre comportamentos), as memórias pessoais de “Olhei Pra Trás” e “Deolinda de Jesus”, juntando ainda um tema nascido de um poema de Fernando Pessoa (“Canção”), o viço pop do tema-título e um olhar sobre os afetos na “Canção de Engate” que acabou escolhido como single de avanço. Esta canção chega às rádios quando António Variações está já hospitalizado, tanto que ali que se deslocam os amigos que lhe mostram a proposta para a capa do álbum, que mostra uma das suas melhores sessões de fotografia, assinada por Rui Cunha. O disco, mais polido nas arestas e mais vincado num caminho pop bem contemporâneo, com um peso bem evidente tanto dos sintetizadores como de uma postura rítmica em sintonia com os ares dos tempos, nasceu publicamente ao mesmo tempo que António Variações nos deixava, naquela manhã de Santo António que fez silêncio cedo demais a uma das mais visionárias das obras da pop criadas entre nós. Momento, contexto e, sobretudo, estigma, não deram ao álbum a mesma relação popular conquistada um ano antes por “Anjo da Guarda”. Na verdade foi preciso esperar pela versão da “Canção de Engate” pelos Delfins e pelo efeito de reativação da memória criado por um ‘best of’ lançado já nos anos 90 para que as canções de “Dar e Receber” chegassem a um mesmo patamar de reconhecimento entre a obra de António Variações. Uma nova prensagem e vinil (desta vez colorido, mais concretamente cor de rosa, vincando as sugestões do próprio grafismo da capa) devolve-o uma vez mais aos escaparates das novidades nas lojas de discos.

“Dar e Receber” de António Variações está disponível numa nova prensagem em vinil colorido, numa edição da Warner.

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