É certo que já tinha havido toda uma movimentação que acabou arrumada sob o chapéu comum “Jovem Guarda” e, mais ainda, as visões ousadas e decisivamente marcantes que o tropicalismo tinha colocado em cena na reta final dos anos 60, isto sem esquecer a emergência de um samba rock ou as primeiras expressões de um funk de travo local já na autora dos setentas, mas nunca antes a música brasileira tinha conhecido um fenómeno como aquele que, sobretudo em 1973, e ainda com ressonâncias em 1974, fez dos Secos & Molhados um caso de sucesso sem par no que até então havia acontecido, com vendas a superar a fasquia do milhão e, naqueles dias, a ultrapassar de longe os habituais campeões de vendas. 

Um grupo de amigos paulistas começou a atuar no mítico bairro do Bexiga (na verdade uma zona sem expressão administrativa que se estende do segmento nordeste dos Jardins até à Bela Vista). Ao leme dos acontecimentos estava João Ricardo, a principal força criativa do grupo. Nascido em 1949 em Arcozelo, perto de Ponte de Lima (sim, em Portugal), filho do poeta e jornalista João Apolinário, que estava a viver exilado no Brasil desde 1963 (dada a rota de choque com o regime), e ao qual a família se juntou. Apesar de principal autor das canções que começam a emergir, João Ricardo reconhece que não tem ainda a bordo a voz certa. Uma amiga comum levou-os então a conhecer um jovem cantor natural do Mato Grosso do Sul que por aqueles dias viva um lifestyle hippie e vendia as suas criações artísticas na muito central Praça da República. Ney de Souza Pereira, que (como Ney) tinha já interpretado canções na banda sonora de “Prá Quem Fica… Tchau” (que podemos escutar num EP de 1971), já respondia por aqueles dias pelo nome artístico entretanto adotado, no qual carregava a sua genética geográfica (e cultural). Juntou-se ao fundador João Ricardo e a Gerson Conrad, formando o núcleo da formação que toma por nome uma referência linda numa tabuleta de um armazém em Ubatuba (cidade do litoral norte do estado de São Paulo). Assim nasciam os Secos & Molhados que, depois de ensaios, jornadas de trabalho e primeiras datas ao vivo na célebre Casa de Badalação e Tédio, criando um pequeno fenómeno que chama a atenção de um dos responsáveis pela Continental, uma editora que tinha expressão editorial significativa mas sem repertório na linha do que então o grupo propunha e que, ao invés de outras grandes casas “gravadoras”, reagiu com entusiasmo perante o que ali estava a nascer. 

A génese dos Secos & Molhados e olhares detalhados sobre os seus elementos representa os capítulos iniciais de uma nova versão do magnífico “Primavera nos Dentes”, livro de Miguel de Almeida que tem como objetivos principais não apenas o contar da história dos Secos & Molhados mas notar como esta história de inesperado e gigante sucesso foi moldada por um tempo em que o Brasil vivia sob a ditadura militar, com censura aplicada em diversas frentes de expressão e veiculando propostas que em muito contrariaram a lógica moral então prevalecente. Muito detalhado, fluente na narrativa, o livro acompanha, depois das rotas convergentes entre músicos e acontecimentos, o caminho que os levou à gravação do mítico álbum de estreia, notando as contribuições de outros músicos (como as que geraram um vincar de uma genética portuguesa na canção “Vira”, mas com um twist do acordeão a piscar também o olho à música nordestina e gaúcha) mas também de outros profissionais, como o fotógrafo António Carlos Rodrigues, autor da célebre imagem que vemos na capa do álbum, com os músicos mostrando as cabeças em bandejas, entre broas, enchidos, cebolas, feijão e vinho. A descrição da sessão fotográfica e o modo os músicos a ela reagiram (de formas bem distintas) traduz o clima de instabilidade e fragilidade que, apesar da vertigem criativa, habitava já entre os Secos & Molhados, antes mesmo do próprio disco ser lançado e, claro, do fenómeno de vendas que apanhou tudo e todos de surpresa. 

Juntamente com uma proposta decididamente desafiante no som, sugerindo novas possibilidades para linguagens rock, a imagem andrógina do grupo (em sintonia com o que então acontecia em terreno glam rock), fez de “Secos & Molhados”, editado em 1973, um statement artístico ousado e único que, à partida, poderia ter tudo para cativar melómanos atentos e espíritos orientados pelas vanguardas do pensamento e comportamentos. Todavia, e apesar do tempo político e social que então se viva num Brasil  sob a presidência de Emílio Médici (o terceiro chefe de estado do período da ditadura militar, já sob vigência do célebre Ato Institucional Número 5 promulgado pelo seu antecessor e sob o qual surgira a censura prévia na música, cinema, teatro e televisão), o álbum gerou um fenómeno de sucesso fulminante. Tanto que os 1500 exemplares inicialmente prensados esgotaram numa semana, com as vendas a atingir o patamar das 300 mil cópias em dois meses, atingindo a marca do milhão em menos de um ano. 

O livro acompanha a par e passo a vida de estrada que se seguiu, nota o desapego com que Nem Matogrosso lida com os rendimentos, e deixa claro que, no fundo tal como sucedera com os Beatles depois de Brian Epstein, más decisões no plano do management podem minar um percurso de sucesso. As páginas observam a presença de jogos de poder, que levam o pai de João Ricardo a ter uma presença mais interventiva na agenda do grupo e mudanças que então são aplicadas que aceleram o degradar do relacionamento interno entre o grupo que parte para a gravação de um segundo álbum de estúdio já com uma ideia de fim na linha do horizonte, não repetindo de facto esse “Secos e Molhados II” (1974) a resposta que o disco de estreia havia gerado um ano antes. Mas o mundo da música no Brasil não mais seria o mesmo, representando esse álbum mítico de 1973 uma das maiores referências para muitas ideias que dali nasceram nos últimos 50 anos. 

“Primavera nos Dentes”, de Miguel de Almeida, está disponível numa edição de 362 páginas pela editora Record. Esta edição é brasileira.

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