Quantas “obras” cabem dentro de uma vida? Cada caso é um caso diferente. Mas Scott Walker (1943-2019) desafiou como poucos aquela ideia de que de um artista esperamos que siga este caminho porque antes andou por ali e por ali mesmo deverá avançar… Começou a carreira como teen idol nos anos 50 e cinco décadas mostrava-se como um dos mais respeitados experimentadores para lá das fronteiras dos géneros musicais. Um conjunto cinco álbuns editados entre 1967 e 1970 definiu um dos mais importantes legados. E pelo caminho experimentou ainda duas vidas a bordo dos Walker Brothers – que nem eram Walker nem irmãos – e ainda como autor de música para cinema.
Norte-americano, natural do Ohio (nasceu em Hamilton em 1943), Scott editou os seus primeiros discos em finais dos anos 50. Moldado segundo as normas dos primeiros teen idols, estreou-se como Scott Engel (o seu verdadeiro nome é Noel Scott Engel) em 1957 com o single “When is a Boy a Man”. Sem se afastar muito desses terrenos de uma pop ligeira para consumo dos adolescentes da época, continuou a gravar ora a solo ora através de bandas como os Moongoers, The Chosen Few, The Newporters e The Dalton Brothers antes de, em 1964, se juntar a John Maus e Gary Leeds para com eles formar os Walker Brothers que lhe dariam um estatuto de grande popularidade.
A consciência da limitação dos formatos pelos quais se expressava a música dos Walker Brothers e a progressiva formação de um gosto a seguir por caminhos diametralmente opostos – passando por Beethoven pelo jazz, o cinema de Godard ou de Bergman – acabariam por conduzir a uma (primeira) separação do trio, devolvendo Scott Walker a si mesmo. Mas o homem que editaria o seu primeiro álbum a solo em 1967 estava já longe da teen star que somara êxitos com “Pretty Girls Everywhere”, “Make It Easy On Yourself” ou “The Sun Ain’t Gona Shine Anymore” entre 1965 e 66 e, mais ainda, do rapazito que, em nome próprio, dera os primeiros passos nos anos 50. Editado em setembro de 1967, “Scott” mostrava desde logo na foto da capa um rosto que recusava olhar para a câmara, escondendo os olhos com uns óculos escuros. “Há ali uma privacidade a ser defendida”, descreveu Rob Young no booklet da edição de uma caixa que há poucos anos reuniu os álbuns de 1967 a 1970, acrescentando que “coisas da infância estão assim a ser arrumadas”.
E assim era. Um Scott Walker existencialista emergia naquele instante em que o rapaz se afastava e cedia o palco ao homem. As vivências recentes entre concertos de música clássica, uma admiração pelas bandas sonoras assinadas por Michel Legrand e Ennio Morricone e a pop mais sofisticada que chegava de França ajudaram a definir um patamar que definiu o terreno onde emergiram as novas canções. Mas a maior das descobertas que o disco denunciava era a da música de Jacques Brel. O grande cantautor belga – um dos maiores de todos os tempos – tinha abandonado os palcos em 1966, mas foi num musical, com letras traduzidas para a língua inglesa por Mort Schuman, que Scott Walker contactou pela primeira vez com aquele que seria uma das mais marcantes forças na definição da sua personalidade musical desta etapa. A força daquela escrita (das palavras aos temas controversos), o fulgor dos seus arranjos e pujança interpretativa de Brel arrebataram-no. Durante três discos (de “Scott” a “Scott 3”) gravou três versões de Brel, que mais tarde seriam reunidas na compilação “Scott Walker Sings Jacques Brel”, em 1981. Scott define por esses dias a emergência de um novo modo de entender a forma das canções. Diferente da grandiosidade do som dos Walker Brothers, procuram novos caminhos, alargam os horizontes dos arranjos, explorando as potencialidades dos sons da orquestra. Nascido em contraciclo num verão que assistia ao florescer definitivo do psicadelismo, o disco definiu um modelo que seria retomado, sob ocasionais diferenças, nos discos “Scott 2” e “Scott 3” (o disco que inclui o tema “30 Century Man” que deu o mote para o título deste texto), a grande mudança chegando em “Scott 4”, o primeiro dos seus discos integralmente feito apenas de canções de sua autoria.
Depois de alguns títulos de impacte mais discreto nos anos 70, regressa em 1984, com “Climate of Hunter”, disco que mostrava algo completamente diferente. O desafio voltava a corroer a alma de Scott Walker e nascia um álbum que, tal como os de finais de 60, se mostrava bem distante das tendências ao seu redor, mas que ao mesmo tempo traduzia assimilação de sinais dos tempos nos sons, nos instrumentos, na produção. Era, contudo, embora em climas instrumentais diferentes, um álbum de canções ainda entendidas segundo a sua forma mais canónica. A voz apontava, contudo, para outros destinos mais distantes. Sem então o imaginarmos, começa ali a desenhar-se o Scott Walker “tardio”, um visionário que abandona as formas mais clássicas da canção popular para, daí em diante, procurar uma música exploratória, na qual o canto, a composição e arranjos revelam desejos de busca acima das convenções e dos géneros musicais. Aquela ideia das “barreiras” entre formas e géneros teve aqui um espírito demolidor. Não houve muro que lhe resistisse. Porque se limitou a seguir o seu caminho.

É do passo seguinte, nove anos depois, que emerge o assombroso e profundo “Tilt”, disco que pode causar alguma perplexidade num primeiro encontro para quem guarde a imagem do Scott Walker dos álbuns orquestrais de finais dos anos 60. Aqui emergem sinais mais claros de uma nova visão que desmonta ideias e, mais do que dar-nos respostas claras, prefere lançar-nos em caminhos de busca, feitos de sombras, de tensão, como se nos convidasse a entrar, visceralmente, nas entranhas da sua visão artística.
O álbum, dominado por uma música moldada por tons assombrados (houve quem usasse a palavra fúnebre) começou a ganhar forma com primeiras linhas de escrita lançadas em 1987, foi essencialmente composto em sessões de trabalho entre 1991e 92 mas, mesmo com uma última composição acrescentada em 1993, só conheceu a sua forma final em 1995, o ano em que chegou aos escaparates. Propondo visões sobre o mundo presente (“Bolivia 95”), evocando figuras como a rainha Carolina (mulher de Jorge IV) ou Adolf Eichmann, e incluindo palavras de Pasolini, abrindo o alinhamento com “A Farmer in The City” que usa uma tradução do poema “Uno dei tanti epiloghi” do mítico realizador e poeta italiano, “Tilt”, que envolveu uma colaboração com o naipe de cordas da London Sinfonia e conta com o som do orgão do Methodist Central Hall, é um disco intenso e pessoal que conheceu então ressonâncias naturais na banda sonora de “Pola X” de Léos Carax ou nos dois temas para um álbum de canções de Ute Lemper (“The Punishing Kiss”) editado pouco depois. “Tilt” abriu uma etapa na obra de Scott Walker que teria depois continuidade natural em “The Drifter” (2006) e “Bish Bosh” (2012), ambos editados pela 4AD.





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