Apenas parte da obra de Fausto está disponível nas plataformas digitais. Em concreto, estão disponíveis para audição em streaming o clássico “Por Este Rio Acima” (1982) e todos os seguintes… Em tempos, as edições do período de ligação à Orfeu (quatro álbuns originalmente editados entre 1974-79) surgiram em CD, assegurando assim a sua existência na era digital, mas nenhum deles está hoje presente nas plataformas de streaming. Mesmo assim, há um outro disco ainda mais ausente, que conheceu apenas uma edição em vinil aquando do seu lançamento, em 1970 e que, depois, se tornou invisível até mesmo em alinhamentos de concertos e edições de “best of”. É um retrato de juventude de um Fausto antes de ser “o” Fausto que seria depois um dos maiores protagonistas da história da música popular portuguesa. Mas, mesmo que não tenha em si marcas sequer dos alicerces da música que depois começaria a ganhar forma uns (poucos) anos mais adiante – apesar de apresentar uma canção de título “África” e logo ali deixar claro um mapa de acontecimentos a explorar -, este álbum merece a não inviabilidade a que o tempo o foi votando. Até porque cumpre um papel, ao lado de uma Filarmónica Fraude ou um Quarteto 1111, na história da procura de novas linguagens musicais para a língua portuguesa na viragem dos anos 60 para os 70, quando o pop/rock se afastou dos mimetismos do yé yé para ensaiar uma linguagem mais perto de raízes culturais e do quotidiano político e social do Portugal de então e, ao mesmo tempo, os ecos da música folk começavam a encontrar renovadas vias de expressão através de uma nova geração de vozes por esta Europa fora.
Então com apenas 20 anos, Fausto tinha-se estreado em disco em 1969 com um EP que apresentava sobretudo canções não muito distantes da (então) emergente geração de baldeiros, porém com sinais de que havia ali já mais caminhos em jogo, como se escura em “Quero Ir Para Lá”, com arranjo para orquestra e mood herdado das recentes visões lançadas pelos Beatles e outros mais exploradores de novas possibilidades para a canção pop/rock. Deste EP, contudo, foi “Chora Amigo Chora”, então numa versão para voz e guitarra acústica, o momento que abriu o caminho ao passo seguinte: um álbum que tem neste EP a sua raíz direta mas que amplifica depois, de formas bem evidentes, as dimensões narrativas e cénicas num músico que, apesar de já firme na escrita e composição, mostrava aqui sinais de visões que, a seu tempo, levariam mais mundos às suas canções.

Contando uma vez mais com arranjos para orquestra do maestro Jorge Machado, juntando em estúdio as colaborações do baixista Edmundo Silva (ex-Sheiks), do guitarrista Luís Waddington (ex-Conjunto Mistério) e do baterista António Maurício, e sob a produção de João Martins (profissional da rádio que, por aqueles tempos, assinou igualmente trabalhos para a Filarmónica Fraude ou os Fluído, banda onde militavas Paulo de Carvalho), Fausto criou um alinhamento que traduzia claros sinais dos tempos, tanto nas esferas da música como no tom melancólico que possivelmente traduzia inquietações de uma juventude perante o clima do presente português de então. Por um lado as matrizes pop/rock são dominantes, aqui e ali permitindo frestas de exposição de linguagens de berço folk (como em “Ó Pastor Que Choras”, criada sobre um poema de José Gomes Ferreira), abrindo frequentemente portas a surpresas e desafios nas formas (por vezes mais complexas do que eram os padrões do pop/rock português de então), assimilando inclusivamente ecos do psicadelismo e primeiros aromas de uma música com vontade em cruzar mais universos e referências (como então começavam a fazer nomes como os Jethro Tull ou Fleetwood Mac). “Madrugada” inclui uma locução de José Manuel Nunes que vinca o plano das sugestões narrativas. “Chora Amigo Chora” surge em nova versão, mais encorpada. “Homens” ousa desenhar uma cenografia com sonoplastia. “Denúncia Voluntária da Atração” rasga igualmente o mapa cénico, desta vez contando com letra de António Pinho (então na Filarmónica Fraude). Já “África”, que não fecha os olhos a questões políticas e sociais de então (como o desemprego), e que terá atraído o risco do lápis da censura, é episódio musicalmente ainda mais desafiante, representando talvez o momento mais marcante de um álbum que não merece ser nota de rodapé na história da música portuguesa. Não por acaso, o single extraído deste álbum juntava de um lado “África” e, do outro, “Ó Pastor Que Choras”.
Profundamente ligado ao movimento associativo universitário lisboeta desde 1969, tendo algum tempo depois conhecido Adriano Correia de Oliveira e José Afonso, que passaria a acompanhar, Fausto vive os anos posteriores à edição do seu álbum de estreia mais correndo a estrada com outros músicos e mais focado nas lutas académicas do que de braço dado com as suas próprias canções. Conhecidas as suas posições contra a guerra, em 1972 é eleito presidente da direção da Associação de Estudantes do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarina, ao que o Ministério da Educação de então reage com um veto. Um ano depois é chamado compulsivamente a cumprir o serviço militar, mas não se apresenta em Mafra e é dado como refratário, passando a uma existência clandestina, embora sem sair do país. O facto de Fausto se ter afastado da boca de cena das atenções para escapar a um destino nas frentes de guerra e o “incómodo” que estas canções terão causado (à censura, claro) talvez expliquem parte das razões de um tão promissor e interessante disco ter passado longe das atenções. O próprio Fausto acabou por não querer regressar a um disco ainda marcado pelas naturais imperfeições de quem dá primeiros passos em estúdio (coisa que o reconhecido perfeccionista não repetiria). Mesmo tendo canções como “Chora Amigo Chora” e “Ó Pastor Que Choras” sido a razão de um prémio “Revelação” entregue pelo programa “Página Um”, o álbum não voou mais alto…
Os caminhos de Fausto, que passaram depois por um aprofundar de uma voz política e poética que se afirmaria ao cantar Eugénio de Andrade, Mário Henrique Leiria, Alexandre O’Neill, o angolano António Jacinto ou cabo-verdiano Daniel Filipe entre o alinhamento de “P’ro Que Der E Vier” (que edita já em 1974). Estas opções vincam rotas de gradual divergência face ao que “Fausto” havia desenhado em 1970. A obra do músico conheceria depois etapas de franca evolução (e de aprofundamento de uma identidade criativa) entre os álbuns “Um Beco Com Saída” (1975), “Madrugada dos Trapeiros” (1977) e “Histórias de Viajeiros” (1979), com episódio maior alcançado em 1982 no mítico “Por Este Rio Acima”. Por esses dias “Fausto”, o álbum de 1970, era já algo distante e quase esquecido junto da nascente de todo este caminho. Mas está longe de merecer o silêncio. O génio de Fausto, mesmo em tempo de expressão de uma linguagem juvenil, estava já entre estas canções que, na verdade, ajudam a fazer um retrato mais completo de um país a começar a caminhar para uma rota de mudança.





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