São raros os momentos em que uma câmara entrou, com tempo, liberdade no olhar e capacidade em se tornar invisível no espaço de intimidade que assiste à criação de um disco. Dos poucos momentos conhecidos nasceram contudo episódios de perfeito diálogo entre as linguagens do cinema e a música. Assim foi quando, em 1968, Jean-Luc Godard assistiu à criação de “Sympathy For The Devil” dos Rolling Stones. Ou, em janeiro do ano seguinte, quando Michael Lindsay Hogg acompanhou as sessões das quais nasceria “Let It Be” dos Beatles, criando neste caso imagens que, entretanto, geraram uma mais recente série assinada por Peter Jackson. Tecnologia desenvolvida pela equipa de Peter Jackson para isolar fontes de som nos ‘brutos’ captados entre os Beatles permitiu “escutar” diálogos que abriram novas frentes de leitura sobre o que ali aconteceu. Imagens e sons de arquivo ganharam nova vida. E valeu a pena a longa esperta. Esta é precisamente a mesma sensação que podemos experimentar ao ver “Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você”, documentário de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay que desperta imagens captadas há 50 anos com uma câmara de 16mm para nos contar a história de um álbum maior da história da música brasileira que, em 1974, juntou Elis Regina e Tom Jobim.
Com atenção pela apresentação de um a narrativa que inclui o antes e o depois (lembrando quão importante para a própria afirmação e reconhecimento da bossa nova foi a interação com músicos de jazz norte-americanos), o filme conta a par e passo o era uma vez de um álbum que foi tudo menos coisa simples, direta e tranquila. O choque de duas identidades, as suspeitas iniciais, as visões de cada um para o próprio projeto, ditaram um arranque de trabalhos no mínimo tenso e que por pouco não acabou antes mesmo de nascer. Por um lado estava ali um compositor focado em com pouco fazer muito, económico nas notas, tocando piano como que a catar milho, como descreve a filha, que lembra que Tom Jobim usava mais a borracha do que o lápis. Por outro, uma voz maior na interpretação, exuberante, capaz de mergulhar nos abismos de emoções como, uma vez, Björk terá comentado ao seu filho.
O encontro deu-se em Los Angeles, onde então vivia Tom Jobim, cidade que a câmara documenta em planos de rua que olham cartazes de cinema e espetáculos que dizem muito sobre o que era então aquela cidade. Um cinema propunha “O Exorcista”, de Friedkin, outra sala exibia “Garganta Profunda”, um outdoor anunciava um concerto dos Jackson 5… Este ar da cidade habitava o estúdio e acabou por marcar o clima no qual o disco nasceu. Mas além de todos estes ingredientes o documentário, que escuta editores, jornalistas e músicos, familiares, amigos e colaboradores, nota como dos acasos nasceram situações únicas que acabariam por contar a alma do álbum. O estúdio que queriam usar estava fechado (de férias), mas havia um outro, com um jovem engenheiro de som que falava espanhol (que pareceu à recepcionista ser um valor importante para a comunicação com uma série de músicos que falavam português)… Quis o acaso que esse jovem fosse Humberto Gatica, que ali fez o seu primeiro trabalho maior, abrindo um percurso que entretanto lhe deu 17 Grammy. Com os dois protagonistas, o arranjador Cesar Camargo Mariano (que também tocou piano), e outros mais músicos de primeira água (que o filme escuta em entrevistas recentes), nasceu ali “Elis & Tom”, um disco que, com observa um crítico do New York Times, tem todas as notas no sítio certo. Apesar da riqueza dos depoimentos, é nas imagens com 50 anos, até aqui fechadas em bobinas, que mora a alma deste reencontro com um disco histórico. Entre ensaios, momentos caseiros e olhares captados em estúdio (muitas vezes na régie, com a equipa a reagir ao que acabou de gravar), o mergulho no tempo coloca-nos lá. E, tal como os que ali estavam há 50 anos, só podemos acabar seduzidos e encantados.
“Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você”, de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, está em exibição nas salas portuguesas.





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