Apesar do impacte de uma cena cultural juvenil nos anos 60 com importante expressão musical que acabou conhecida como Jovem Guarda (nome de um programa então emitido pela TV Record) e, ainda na reta final dessa mesma década, de uma outra geração de músicos que aliavam a emergência de novas formas do pop/rock ocidental a alicerces da cultura brasileira, inventando o Tropicalismo (que assimilou a música elétrica, gerando saudáveis focos de controvérsia), a década de 70 brasileira tinha assistido, sobretudo após o ponto final da primeira etapa de vida dos Secos & Molhados e apesar do gradual crescimento em popularidade de Rita Lee, a um recuo face ao que era então uma emergente música rock made in Brasil. Talvez, como no Portugalpré-74, a vida em ditadura explique parte do que foi um quase apagão de fenómenos maiores da música elétrica nesse período, divergindo as palavras e músicas de inquietude que o cenário social e político sugeria para outras frentes da criação musical (sobretudo em território da MPB). Apesar dos jogos de semelhanças e contrastes que faz a cronologia da história da cenografia política, social e cultural entre Portugal e o Brasil no século XX, calhou ser coincidente o momento de reativação de um espaço de afirmação (com dimensão crítica e  popular) de uma nova cultura jovem com expressão musical sobretudo feita através de linguagens com o rock como ponto de partida. É sobretudo entre São Paulo e o Rio de Janeiro, com nomes como respetivamente a Gang 90 e a Blitz, mais adiante juntando Brasília e outros focos a este mapa, que, com a alvorada dos anos 80, uma nova geração de bandas entra em cena, conquistando adesão de ouvidos sedentos de identificação, num Brasil que começava a caminhar rumo à democracia, com eleições diretas na linha do horizonte e as consequentes mudanças que o final da ditadura militar então implicou.

É neste tempo de início de uma revolução musical (e de luta contra várias adversidades, que teria colossais implicações não apenas no panorama editorial mas também impacte nos media) que arranca a trama empolgante que podemos ler no magnífico “Dias de luta: O rock e o Brasil dos anos 80”, livro do jornalista Ricardo Alexandre que contextualiza social, política e culturalmente a chegada à linha da frente das atenções das sucessivas vagas de artistas e bandas que mudaram o panorama da música no Brasil dos anos 80. Para além das vibrantes cenas noturnas de São Paulo (onde fez história a Pauliceia Desvairada, discoteca – ou “balada” como se diz no Brasil – com nome que evoca um poema de 1922 de Mário de Andrade) e do Rio de Janeiro (aqui nas Noites Cariocas, na Urca), em volta das quais emergiram nomes pioneiros como os já referidos Gang 90 e Blitz, a história narrada no livro acompanha a emergência de focos e figuras como os Barão Vermelho (e o inesquecível Cazuza), Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Ira e outros mais cujo impacte vitaminou o panorama radiofónico, conquistando um lugar nas televisões e chegando mesmo a motivar a criação de uma nova imprensa musical local. E não esquece também outra expressão desta cultura de grande audiência que se materializou, em 1985, na primeira edição do Rock In Rio.

Bem documentado o livro vai acompanhando o lançamento dos discos, as digressões, os pequenos e os grandes acontecimentos, as estratégias certas e as erradas, notando como um boom em popularidade mudou em poucos anos o panorama musical brasileiro. Nota a entrada em cena de uma nova pop, com os RPM e Metrô como exemplos, correspondendo o primeiro destes casos a um fenómeno que deixou o gigantismo do sucesso pesar demasiado sobre o que seria uma natural progressão de ideias. E, de facto, transformação da música pop/rock num fenómeno de massas como nunca antes visto, com a consequente dimensão económica que esta dimensão implica, juntou ingredientes que nem sempre tiveram um desfecho feliz. A derrocada dos RPM ou um célebre (e problemático) concerto de regresso a casa (em Brasília) da Legião Urbana, são apenas alguns dos exemplos aqui lembrados. De resto, é no enunciar dos feitos e dos fracassos que evolui uma história que tem a preocupação em assegurar ao leitor o acesso a dados complementares que permitam entender os contextos em progressiva evolução, conduzindo-nos por uma trama que assiste, a dada altura, a uma aproximação aos músicos mais jovens por parte de veteranos da MPB, movimentação que assim molda não apenas o desfecho de uma década intensa em ideias e discos, mas acaba por assegurar a abertura de caminhos que alguns destes protagonistas assumiriam com a chegada dos anos 90. Há de facto um arco de ascensão e queda aqui narrado. Mas o que antes era vivia invisível, mesmo perante as convulsões que a década colocou em palco, afinal acabava por ditar mudanças irreversíveis. E o espaço de afirmação (pela música) de culturas urbanas emergentes tinha sido amplificado.

“Dias de luta: O rock e o Brasil dos anos 80”, de Ricardo Alexandre, é um volume de 438 páginas disponível numa edição (brasileira) da Arquipélago.

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