Se bem quer a liberdade tivesse chegado à vida pública logo em 1974 foi preciso trilhar um caminho para que a música encontrasse as diversas rotas de expressão das muitas possibilidades que se abriam aos modos de olhar para o mundo e expressar identidade e criatividade. E só depois de um tempo de intensa (e natural) politização da canção imediatamente após a revolução e da ressaca mais “ligeira” que se seguiu na reta final dos anos 70, chegou um momento em que, com rotas de estabilidade na vida política e social, a música teve terreno para prosperar. Se por um lado ganhou dimensão uma nova geração pop/rock (falou-se então no “boom”) e logo depois conquistaram atenções novos exploradores dos ecos da música tradicional, o retrato desta liberdade conquistada não se faz sem ter em conta as frentes exploratórias que então tiveram como principal palco o lisboeta Rock Rendez Vous mas que ali não se esgotou. Nada como o passar do tempo para, com distanciamento, olhar para os acontecimentos e feitos sem o viés que o facto de viver em bolhas inevitavelmente sugere. É por isso não apenas discograficamente oportuno mas sobretudo revelador o conjunto de olhares sobre a faceta mais “experimental” que emergiu no Portugal musical de então que nos é proposta em “Atlantic Mavericks – A Decade of Experimental Music in Portugal (82 – 93)”, uma compilação com curadoria do DJ espanhol Glossy Mario, que se apresenta na versão em vinil acompanhada por liner notes de Rui Miguel Abreu.

O alinhamento é suficientemente diversificado para notar a largura de horizontes pelos quais as demandas exploratórias então caminhavam, não se fechando portanto entre os nomes e bandas que então desenhavam a modernidade espelhada na programação do Rock Rendez Vous (e mais elogiada pela inteligentzia de então). Assim, a nomes de facto marcantes na história indie local dois oitentas como os Pop Dell’Arte, Linha Geral, Croix Sainte, Santa Maria Gasolina em teu Ventre, Balladium e SPQR, o alinhamento de “Atlantic Mavericks” envolve figuras que caminharam claramente por territórios da música experimental para lá das fronteiras do universo pop/rock como os Telectu, Nuno Rebelo ou Carlos Zíngaro (aqui evocado numa parceria com Vítor Rua). O disco olha ainda para propostas desafiantes vindas de figuras que conquistaram um patamar de visibilidade mainstream como Pilar, Carlos Maria Trindade (então teclista dos Heróis do Mar, mas aqui lembrado numa gravação a solo de 1982) ou os Ban, inclui (com toda a justiça) a música de Luís Cília (através de uma faixa do seu álbum de 1988) e ainda nomes que se calhar justificavam uma maior atenção por parte da historiografia pop nacional: Tó Neto (pioneiro da eletrónica entre nós) e os Fé de Sábio (que editaram um único e quase esquecido álbum em 1990). Boa arqueologia a que se propõe aqui.

“Atlantic Mavericks – A Decade of Experimental Music in Portugal (82 – 93)” está disponível em 2LP e nas plataformas de streaming (Bandcamp) num lançamento da Glossy Mistakes

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