Aquela noite tinha tudo para dar errado. Chovia. Keith Jarrett estava cansado, ou não tivesse passado horas na estrada, na Renault 4L do patrão da editora, estrada fora, a caminho de Colónia. O músico, que tinha dado um concerto em Zurique dias antes, havia trocado o bilhete de avião e optado por ir de carro com Manfred Eicher, chegando a Colónia ao fim da tarde do dia do concerto nessa cidade alemã… Tinha ainda umas horas pela frente, uma vez que o concerto estava marcado para horas bem tardias. Os bilhetes indicavam as 23.30, horário que se devia ao facto de antes a mesma sala, a Oper der Stadt Köln (ou seja, um teatro de ópera) ter em cena uma produção mais próxima do seu DNA habitual… Uma ópera, claro. O certo é que os 1400 lugares da sala estavam esgotados e, mesmo em horário tardio, o desafio de ver ao vivo Keith Jarrett cativara uma pequena multidão. Mas não foi o cansaço da viagem o maior senão daquela jornada. Ao chegar à sala o pianista repara que o piano a si destinado não era o que havia pedido. Era outro. Mais pequeno. E, ao que parece, em condições longe das ideais… Valeu à plateia da sala (e a quem hoje conhece a gravação do concerto), a arte da persuasão da jovem promotora Vera Brandes, então com 19 anos, que conseguiu que o pianista, já então conhecido pelo perfeccionismo, e com mais vontade em cancelar do que em atuar naquelas condições aceitasse tocar. Na verdade, o facto de estar ali o equipamento montado para a captação daquele momento pode ter também pesado na decisão (e, quem sabe, na própria argumentação). Jantou a correr, uma fatia de pizza, num restaurante italiano ali perto. O cocktail de eventos tinha tudo para o deixar longe de feliz e tranquilo. Mas o certo é que, com o relógio a meia hora da meia noite, um pianista cansado e com o piano errado lançou os dedos sobre as teclas… E o resto ficou na história.

Keith Jarrett, que nos anos mais recentes, e após uma etapa ao lado de Miles Davis, tinha deixado os teclados elétricos e regressado ao piano, conhecera Manfred Eicher, que o convidara para entrar a bordo de uma nova aventura discográfica, a ECM, que o produtor alemão havia fundado em 1969 e na qual o pianista se estreara com “Facing You”” um álbum de estúdio, completamente a solo, em 1971. Desde então tinha passado por estúdios e palcos ora em quartetos (um deles, americano, com Dewey Redman, Charlie Haden e Paul Motian, o outro, de alma europeia, ao lado de Jan Garbarek, Palle Danielsson e Jon Christensen) ora noutras parcerias, uma delas partilhada com Garbarek e uma orquestra. E iniciado, ao mesmo tempo, uma série de concertos a solo, ao piano, nos quais improvisar era o verbo a conjugar. E dessa série um primeiro registo ao vivo havia já chegado a disco em finais de 1973, fixando num álbum triplo duas gravações, uma captada em Lausanne, a outra em Bremen, conquistando o título de melhor gravação de jazz do ano, em 1974, pela revista “Downbeat”. 

Aquela noite, a 24 de janeiro de 1975, em Colónia, tinha, assim sendo, já uma expectativa semeada por estes feitos recentes. Mas o que ali aconteceu transcendeu tudo o que poderia esperar. As características daquele (inesperado) piano obrigaram-no a trabalhar sobretudo as escalas do meio e a usar as notas mais graves como peças de percussão. E assim nasceram duas peças improvisadas, uma delas depois transformada no lado A do disco 1, a segunda ocupando a face B do disco 1 e a A do disco 2. Houve ainda um encore, este não nascendo de uma improvisação, mas, antes, de um reencontro com “Memories of Tomorrow”, tema que Keith Jarrett havia já gravado com Gus Nemeth (contrabaixo) e Paul Motian (percussão). Esta peça mais curta, repensada agora para piano solo, surgiria em disco como “Part II C” na quarta face do duplo vinil. O álbum, lançado em novembro de 1975 com o título “The Köln Concert”, vincou o estatuto de Keith Jarrett no panorama do jazz e é hoje reconhecido como um clássico maior do género e fez recordes no campeonato das vendas de discos. Música aqui gravada já foi usada no cinema (ouvimo-la, por exemplo, no “Querido Diário” de Nanni Moretti) e, em ano de cinquentenário, estão agendadas as estreias de dois filmes sobre a sua criação. Um deles, com o título “Köln 75”, realizado por Ido Fluk, apontando algum protagonismo à figura da jovem Vera Brandes (interpretada por Mala Emde), vai ter brevemente estreia mundial na Berlinale.

“Köln Tracks”, de Vincent Duceau, é um documentário que parte do concerto, da gravação do disco e do seu legado para partir em busca do piano. O filme deverá estrear na primavera e será acompanhado por uma novela gráfica que contará esta mesma história. E entre o material já revelado deste filme vemos Vera Brandes a contar que o piano originalmente pedido por Keith Jarrett afinal estava ali, no teatro, embora num lugar diferente do esperado. Mas só depois soube desse facto.

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