O trabalho de composição de música para o cinema é por vezes um espaço de laboratório no qual muitas obras de escritores de canções conhecem eventuais sugestões de novas possibilidades. Que o diga Nick Cave, cujas sucessivas incursões pelo cinema ajudaram a abrir caminhos diferentes para a cenografia das suas canções. Há também situações num sentido inverso. Ou seja, percursos na canção que moldam caminhos que a música para o cinema depois pode experimentar… Aqui podemos encontrar o caso de um Danny Elfman, que através do seu trabalho nos (hoje injustamente esquecidos) Oingo Boingo encontrou ferramentas para, mais adiante, criar canções que deram vida única a filmes como “O Estranho Mundo de Jack” ou “Charlie e a Fábrica de Chocolate”. Peter Gabriel é figura a destacar neste universo de experiências partilhadas entre a canção e o cinema. E na verdade não só nele encontramos alguém que partilha com Nick Cave a condução das aprendizagens conquistadas no cinema rumo aos discos, como na verdade partiu de uma experiência de trabalho para um filme a ideia que o conduziu à criação de uma editora. Aconteceu durante o trabalho de campo que conduziu para preparar a música para “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, e terminou na criação da Real World, que rapidamente se afirmou como uma força com visibilidade global no panorama da world music.
Mas houve um episódio antes dessa colaboração com o cinema de Scorsese (que se manifestou no álbum “Passion” de Peter Gabriel). Três anos antes, depois de terminado um primeiro ciclo de quatro álbuns a solo aos quais não dera mais que o seu próprio nome, e aos quais se seguiu um primeiro disco ao vivo a solo, Peter Gabriel aceitou compor a música para um filme baseado num romance de William Wharton que acompanhava a história de dois amigos de juventude, notando depois o impacte que a passagem pela guerra no Vietname deixa sobretudo naquele que dá o nome ao filme: Birdy. Realizado por Alan Parker, que recentemente tinha levado ao cinema uma visão adaptada do álbum “The Wall” dos Pink Floyd (e que na década seguinte assinaria a adaptação ao grande ecrã de “Evita”, com Madonna como protagonista), “Birdy” deu a Peter Gabriel não apenas a possibilidade de expandir a sua música para além do formato da canção, como o colocou perante um outro músico que teria um papel determinante no episódio pop seguinte: o mítico (e globalmente popular) álbum “So”. De facto é em “Birdy” que os mundos de Peter Gabriel e Daniel Lanois se cruzam, aqui nascendo um olhar mais focado na exploração dos espaços, das texturas e dos detalhes, que, apesar de dados já evidentes em discos anteriores, ganharão maior peso na obra posterior do antigo vocalista dos Genesis.

Disco instrumental, com ocasionais vocalizações do próprio Gabriel, “Birdy” ganhou vida própria além do cinema para o qual esta música nasceu. Peter Gabriel criou para o filme de Alan Parker uma série de novas composições, mas adaptou para um novo contexto algumas peças já existentes e até mesmo gravadas na forma de canções, como foram os casos de “Family Snapshot” e “Not One of Us” do álbum de 1980 e “The Rhythm of The Heart”, “San Jacinto” e “Wallflower” do sucessor, editado em 1982. Densa, intensa, ambiental, moldada para servir narrativa e imagens mas dotada de uma rara capacidade em respirar por si mesma, a música de “Birdy”, onde tanto encontramos parceiros habituais de Peter Gabriel como o baixista Tony Levin e presenças inesperadas como a de Jon Hassell (que por esta altura colaborava regularmente com David Sylvian e preparava o clássico “Power Spot” que lançaria no ano seguinte) este disco, co-produzido com Daniel Lanois, lança claramente as bases de trabalho para a etapa seguinte na obra de Peter Gabriel. Ou seja, “So” começava já a nascer aqui.





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