Cada disco pode contar várias histórias. E quem quiser mais do que ficar olhar para as capas pode agora ler aqui… Dez discos… e as respetivas histórias. E assim nasce o gosto de cada um. E hoje quem partilha aqui os seus dez discos e as respetivas memórias é o João Lopes.

Sem dramatismo, porventura em tom melodramático: não se trata de uma lista de “melhores”, mas não deixa de ser um top. De quê? De rápidos movimentos da memória, recuando a esse tempo em que, no regaço de uma essencial solidão, nos é oferecida a possibilidade de, melhor ou pior, arquitectar um modelo individual de escuta — tarefa interminável, hélas! A ordem cronológica das edições não significa que os discos tenham sido descobertos pela mesma ordem, o que, enfim, ajuda a compreender os limites da selecção — e a sedução desses limites. Texto: João Lopes
Herbert Von Karajan / Berliner Philharmoniker: R. Strauss “Ein Heldenleben”
(1959)
Foi uma das primeira gravações de Herbert von Karajan para a Deutsche Grammophon. O poema sinfónico de Richard Strauss, concluído em 1898, é uma obra-prima capaz de conciliar o fulgor espectacular com o mais delicado intimismo, de natureza auto-biográfica. Em qualquer caso, nada disso pesou na minha descoberta, uma vez que foi uma compra motivada pela integração de outra obra emblemática de Strauss, Assim Falou Zaratustra, na banda sonora de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick. A edição que possuo terá saído em meados da década de 60; uma coisa é certa: no canto superior direito da contracapa, o LP tem um selo dourado da Discoteca Roma.
Jacques Brel “Jacques Brel à L’Olympia 1961”
(1961)
Este é mesmo dos mais antigos, objecto íntimo da adolescência. Mais do que a relação com a canção francesa (francófona, hélas!, convém não esquecer que Brel nasceu na Bélgica), trata-se de uma relação com a língua francesa — primeira língua estrangeira para a minha geração; língua de grande proximidade afectiva, por razões familiares. Também com uma primordial lição política: não é impunemente que se escuta a contundência do modo de dizer “les bourgeois c’est comme les cochons”. E uma verdade existencial que, mal ou bem, continuo a revisitar como pensamento e assunto de escrita: a exposição em palco envolve a arte suprema de dizer “eu”.

Karl Ritter / Orchestre de La Societé des Concerts de Vienne: Beethoven “Sinfonia Nº 7”
(1966)
De onde veio este disco, não sei. Estranhamente, algo me leva a supor que começou por pertencer a um colega de liceu (há mesmo na contracapa aquilo que parece ser um assinatura rasurada). O certo é que o segundo andamento (Allegretto) da 7ª de Beethoven possuía — e, por certo, continua a possuir — esse poder radical de ser uma viagem introspectiva e um hino universal sobre o enigma do ser. Ou da harmonia musical, o que vem a dar no mesmo.
The Beatles “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”
(1967)
Ah! O rótulo de disco revolucionário é equívoco. Os elementos transfiguradores são muitos: meses de trabalho em estúdio, ao contrário da rotina de todos os grupos da época, incluindo, claro, os próprios Beatles; canções muito para lá dos modelos correntes de exposição/refrão; mais do que uma colecção de canções, um álbum concebido como estrutura narrativa… Claro que tudo isso é inovador, fundamental para compreender o que lá está. O certo é que o seu genuíno carácter revolucionário não envolvia qualquer corte com o contexto musical da época: era mesmo a linguagem corrente de escuta e comunicação. Em boa verdade, não o sabíamos dizer assim — mas vivêmo-lo.

The Beatles “The Beatles” (ou “The White Album”)
(1968)
Sublime confusão. Entre o lamento romântico de Harrison (While My Guitar Gently Weeps) e a crueza “mais-punk-do-que-o-punk-que-estava-para-vir” de Lennon/McCartney (Everybody’s Got Something to Hide Except Me and My Monkey), este parece ser o sinal mais exuberante das distâncias que se estavam a desenhar entre os quatro. Talvez. Mas dessa desagregação nasce um objecto cujos contrastes geram um conjunto cujo esplendor parece poder resumir as alegrias e angústias criativas da música da segunda metade do século XX. Sem qualquer justificação histórica, gosto mesmo de pensar que a capa branca envolve a “mensagem” essencial: não há figura, concreta ou abstracta, para simbolizar tal pluralidade — a paisagem branca existe como a página inicial do escritor a inventar o romance do seu próprio abandono.
John Lennon “Imagine”
(1971)
Tínhamos sido abandonados. E, no entanto, não era uma questão de culpa — não era culpa de ninguém (nem sequer de Yoko). Desfeito o quarteto, os álbuns a solo definiam a persistência de um país cuja bandeira alienara o seu capital simbólico — cada província seguia, agora, a sua própria política (no caso do belíssimo McCartney, lançado em 1970, Paul, para evitar confusões, encarregava-se de tudo, todas as vozes, todos os instrumentos). Além do mais, o facto de Imagine (a canção) ser um depurado hino pacifista não esgota a energia realmente política de Imagine (o álbum): aqui se canta também, por exemplo, I Don’t Wanna Be a Soldier Mama e Gimme Some Truth. Dito de outro modo: não havia mais Beatles, mas a imaginação confirmava-se sem limites.
The Rolling Stones “Exile on Main St.”
(1972)
Blues, rock, confissões e teatro. O fascínio dos álbuns duplos é algo que as convulsões dos suportes virtuais fizeram perder — como se ensina esse fascínio, mea culpa, não sei. Tal como no caso do “Álbum Branco” dos Beatles, os dois discos de vinyl implicavam a ideia de que a proposta não era ligeira nem acidental — como se estivessem aqui todas as matrizes dos 50 anos seguintes (coisa que, evidentemente, não sabíamos). A começar pela batida de abertura de Rocks Off e a sua maravilhosa primeira quadra: “I hear you talking / When I’m on the street / Your mouth don’t move / But I can hear you speak”. Sem esquecer que é neste álbum que está o tema Shine a Light… se é que me faço entender.
Joni Mitchell “For the Roses”
(1972)
Correndo o risco de ofender meio mundo, e não ser escutado pela maioria da outra metade, há qualquer coisa de ignorância hipócrita na noção de que a “libertação” das vozes femininas teve de esperar pelo advento destes nossos gloriosos tempos globais… Aliás, Joni Mitchell não carece de rótulos mais ou menos panfletários, uma vez que a sua militância se confunde com a serenidade medieval da tradição trovadoresca. Até porque, sem recorrer às fascinantes deambulações psicanalíticas em torno do impulso amoroso, convém lembrar que ela resolveu a questão com a máxima contenção económica. Dois versos: “Oh honey you turn me on / I’m a radio”.
José Afonso “Venham Mais Cinco”
(1973)
Onde se cruzam o património folclórico português, o gosto da experimentação vanguardista e a nostalgia insensata do fado? Numa única paisagem musical: a obra de José Afonso. No pré-25 de Abril (o álbum foi lançado em Dezembro de 1973), Venham Mais Cinco correspondia a uma vibração única que estava longe, muito longe, de se esgotar numa dimensão estritamente portuguesa, ainda menos militante — José Afonso era e, a meu ver, continua a ser a esplendorosa expressão de uma criatividade universal que nasce do amor pelas singularidades portuguesas. Com amor e requintes de metódico humor: “Nefretite não tinha papeira / Tuthankamon apetite / Já minha avó me dizia / E olha que a sopa arrefece”.
Miles Davis “Get Up With It”
(1974)
Jazz & funk. América & África. Muito para lá dos escândalos então montados pela “jazz police”, ofendida com a contaminação da tradição pelas electrónicas, Miles soava como testemunho do absoluto que se pressente na energia das formas: esteticamente, tudo era possível, e essa possibilidade era a coisa mais política que se podia pensar. Álbum duplo, cerca de duas horas de duração, escuta-se como uma radical confissão de alguém que avalia o esplendor e o mistério da própria música como Ideia — ou, se quiserem, como desejo de pensamento.