Originalmente criados por Prince para um álbum do projeto Madhouse (que ficou na gaveta) e depois entregues a Miles Davis em 1991, “Penetration” e “Jailbait” eram inéditos há muito conhecidos mas que só agora têm aqui uma edição oficial. Texto: Nuno Galopim

Dois temas de Prince até aqui inéditos e novas abordagens a “Time After Time” de Cindy Lauper e “Human Nature” de Michael Jackson, estas duas últimas, canções que já tinham conhecido abordagem em estúdio no álbum “You’re Under Arrest”, de 1984, e figurado em vários alinhamentos de atuações ao vivo, garantem desde logo a “Merci Miles – Live At Vienne 1991” uma coleção de razões para levar (uma vez mais) os melómanos mais habituados a vivências pop a (re)descobrir o modo como Miles Davis assimilou estas (e outras) músicas na etapa final na sua carreira. Contou-me o seu sobrinho, aqui há alguns meses, quando se apresentava o álbum póstumo “Rubberband”, com as sessões que acabaram na gaveta quando, em seu lugar, o trompetista optou por lançar “Tutu” como primeiro disco no âmbito de um novo acordo com a Warner, que, em meados dos anos 80, Miles Davis estava encantado com uma nova ferramenta de divulgação musical: o teledisco. Tinha por hábito a televisão ligdada e quando as imagens o estimulavam pedia para ouvir o som… Assim chegaram à sua música canções de Cindy Lauper e de Michael Jackson. E também dos Scritto Politti, com quem acabaria por trabalhar (tocando em “Oh Patti”) e interpretando, à sua maneira, “Perfect Way” no alinhamento de “Tutu”.
Outra figura que entra no mundo de Miles Davis por esta altura é Prince. Tinham-se conhecido em 1985. E desde então a ideia de possíveis colaborações deixou-os ligados. Prince chegou a submeter a Miles uma criação sua para o alinhamento de “Tutu”. O tema tinha por título “Can I Play With U” mas acabou fora do alinhamento do álbum de Miles, surgindo finalmente em 2020 uma versão ao vivo (gravada, com a presença de ambos, no final de uma atuação em Paisley Park) como um dos extras da reedição de “Sing O’The Times”. Mas a ligação de Prince a Miles Davis não se esgotou nesse momento. E no disco que agora é editado eis que finalmente conhecem edição outras duas criações do primeiro para o segundo. Na verdade tanto “Jailbait” como “Penetration” nasceram em sessões que Prince registou em Paisley Park em dezembro de 1989 e estavam ambas destinadas a um álbum do projeto Madhouse, um grupo que Prince reuniu então para experimentar ideias mais próximas do jazz. O álbum acabou na gaveta (ainda é certamente um dos tesouros guardados no arquivo The Vault), mas estes dois temas, juntamente com “The Girl and Her Puppy” foram então submetidos a Miles Davis, que as gravou em março de 1991 nos Bauer Studios na Alemanha, tocando-as depois em alinhamentos daquela que seria a sua última digressão europeia. A Warner chegou depois a pedir autorização a Prince para juntar estes temas ao alinhamento de Doo Bop, o álbum póstumo que veria a luz do dia em 1992. Mas Prince disse que não e os ecos destas colaborações ficaram desde então à espera de, um dia, conhecerem uma primeira edição oficial. Assim acontece, finalmente, para “Penetration” e “Jailbait” nesta gravação ao vivo de 1991 agora lançada em disco.
Um músculo funk cruza-se com alguns momentos de uma gravação que mostra Miles Davis junto do grupo com mais cinco elementos com que se fez à estrada na Europa em 1991, antes daquelas que seriam as suas datas finais, também esse ano, já nos EUA. Com ele estão aqui Kenny Garrett (saxofone), Deon Johnsson (teclas), Foley (baixo), Richard Patterson (baixo) e Ricky Wellman (bateria). Além dos dois temas de Prince e das canções que conheceram voz de referência com Cindy Lauper e Michael Jacskon o alinhamento corre sobretudo por temas do álbum Aura, de 1989 (Hannibal e Amandala) e por Wrinckle, que surgira já em vários alinhamentos de concertos desta fase. O belíssimo texto de Ashley Kahn que acompanha este disco conta depois a história deste concerto e digressão (chegando ao detalhe de notar a ocasião em que, em plena atuação, Miles perguntou a Richard Patterson porque se vestia sempre de preto, acabando por lhe dar umas calças mais coloridas logo depois) e contextualiza este momento não apenas na história musical da etapa final da obra do trompetista mas lembrando importantes episódios da sua relação com França. Já agora vale a pena lembrar que Vienne é uma pequena cidade nas margens do Ródano, fica a sul de Lyon e é casa de um importante festival de jazz que, nessa edição de 1991, apresentava Miles Davis (e também Shirley Horn) no dia de abertura. Foi a 1 de julho de 1991. Trinta anos depois, finalmente, podemos escutar o que ali aconteceu.
“Merci Miles – Live at Vienne”, de Miles Davis, está disponível em 2LP numa edição da Rhino/Warner