Gravado em finais de 1974 num estúdio londrino, “Coro dos Tribunais” contou com direção musical de Fausto e teve entre a sua lista de colaboradores nomes como os de Adriano Correia de Oliveira, Vitorino e Carlos Alberto Moniz. Texto: Nuno Galopim

O primeiro álbum que José Afono edita após o 25 de abril é um disco que traduz, mais do que apenas uma expressão direta dos tempos que então se viviam, ecos não só de rotas recentes na sua música como de vivências que recuavam a outras épocas e geografias. Todavia, o clima de vida em liberdade que o vê nascer é um elemento novo em cena. É certo que José Afonso nunca deixara de abordar temáticas e usar palavras desconfortáveis para o regime que tinha caído a 25 de abril, mas o que havia de novo desta vez era a certeza de que o mundo (português) que ia escutar as novas canções estava diferente. E uma das evidências dessas diferenças surgiu certamente na força de comunicação de uma canção como O Que Faz Falta, com toda aquela carga de apelo ao presente, e que pouco depois do LP teria vida no formato de um single e se escutaria vezes sem conta na rádio.

O Coro dos Tribunais é, na essência, um descendente direto da trilogia que, entre 1971 e 1973 tinha alargado horizontes de possibilidades cénicas às canções de José Afonso. Sobre alicerces bem edificados nos álbuns que precederam o fundamental Cantigas do Maio (1971), esse disco gravado no mítico estúdio em Hérauville (nos arredores de Paris) tinha procurado acrescentar “novos rumos” a uma escrita já firme na demarcação de uma personalidade musical e poética. Os seguintes Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972) e Venham Mais Cinco (1973) mantiveram acesas essas novas demandas, que de certa forma se mantiveram, entre novos colaboradores e azimutes, neste álbum gravado nos estúdios da Pye Records, em Londres (onde em 1970 José Afonso tinha registado as sessões que deram origem a Traz Outro Amigo Também). 

O álbum traduz, por um lado, linhas de continuidade face ao cancioneiro já entretanto fixado em disco por José Afonso (da emergência de uma linguagem folk a trilhos da música tradicional portuguesa), mas vinca, de forma ainda mais clara que nunca, a presença de memórias africanas, seja na instrumentação que escutamos em canções como Ailé Ailé ou o já referido O Que Faz Falta, mas com uma carga que transcende os sons em Lá No Xepangara, canção que evoca memórias pessoais, partilhadas num poema feito de palavras e imagens intensas que a música depois realça. O uso de um moog que encontram no estúdio (e que escutamos em alguns momentos, entre os quais a canção que dá título ao álbum ou em A Presença das Formigas) e novas aventuras por uma poética surrealista, devidamente acompanhada por uma música mais exploratória, como se escuta em Tenho Um Primo Convexo, são novas marcas de um gosto em trabalhar noções de cenografia, desta vez contando com direção musical de Fausto (que toca guitarra acústica), o maestro de um coletivo que, em estúdio, juntou a José Afonso nomes como os de Carlos Alberto Moniz (viola e coros), Vitorino (teclados e coros), Michel Delaporte (percussão), Yório Gonçalves (viola), Adriano Correia (coros), juntos sob produção de José Niza. 

Eu marchava de dia e de noite (Canta o comerciante) e o tema título partem de palavras de Brecht numa adaptação de Luís Francisco Rebelo e de José Afonso que trazem a disco memórias nascidas no teatro, em Moçambique, palco e berço de outras várias ideias e estímulos que estas canções depois fixaram. Apesar do caráter surrealista, Tenho um Primo Convexo alude a um elemento da PIDE que, como recorda Joaquim Vieira na Fotobiografia de José Afonso, lhe dera “bons conselhos” quando esteve preso. A Presença das Formigas, por outro lado, celebra a liberdade. No corpo de canções deste Coro dos Tribunais, como nos mostra em O Homem Voltou, dedicado a um dos fundadores da LUAR, José Afonso não deixa de ser político. Meses depois, em Viva O Poder Popular (editado em single), estaria a contudo criar uma música de ação mais direta sobre o presente. Já capa, com um desenho intenso de José Brandão, deixa uma leitura sobre ecos do regime que, entretanto, tinha sido derrubado.

“Coro dos Tribunais”, de José Afonso, está disponível nos formatos de LP, CD e nas plataformas digitais numa reedição da +5. Os vários formatos apresentam uma versão remasterizada do álbum trabalhada por Florian Sillar nos estúdios Soundgarden, em Hamburgo.

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