Editado em 1989, o álbum “Passion” inclui música criada na sequência do desafio de Martin Scorsese a Peter Gabriel para que reste assinasse a banda sonora de “A Última Tentação de Cristo”. O disco assinalou a estreia da editora Real World. Texto: Nuno Galopim

Assinado por Martin Scorsese, com um elenco no qual encontramos figuras como as de Willem Dafoe, David Bowie ou Harvey Keitel, o filme “A Última Tentação de Cristo” (estreado em 1988) é um dos mais interessantes dos olhares que o cinema lançou sobre figuras e narrativas “bíblicas” após aquele período em que grandes épicos tomaram aqueles tempos, figuras e histórias como tutano narrativo para produções monumentais. Entre os créditos do filme há desde logo uma chamada de atenção, sublinhando que a narrativa que ali se apresenta não é baseada nos Evangelhos. É-o, na verdade, centrada em “Last Temptation”, o romance de Nikos Kazantzakis que toma a figura de Cristo como um homem que, como todos nós, tem medos, dúvidas, desejos. Daí e do confronto com as “tentações” que enfrenta acaba por emergir como uma figura que vence as provações e aceita o seu destino. A banda sonora, composta por Peter Gabriel, editada por alturas da estreia sob o título “Passion”, é ainda outro dos argumentos maiores daquele que é um dos títulos mais importantes da filmografia do realizador norte-americano.
Editado na sequência de “So”, o álbum de 1986 que corresponde ao mais evidente mergulho de Peter Gabriel pelas formas da pop mainstream, “Passion” é um disco que traduz um ponto de viragem na carreira do músico e representa um episódio de importância maior na história da música criada para o cinema. Ciente de que se retratava, mais que apenas um tempo, uma geografia concreta, Peter Gabriel centrou a etapa de pesquisa de ideias para a escrita da banda sonora num trabalho intenso de procura de músicas da região que acolheu a vida de Cristo. Na verdade a etapa de recolha transcendeu até as fronteiras dessa geografia, tendo Peter Gabriel encontrado estímulos em músicas provenientes um pouco mais além, no Paquistão, Turquia, Índia, Costa do Marfim, Egito, Senegal ou Marrocos, entre outros mais lugares.
O trabalho tinha começado ainda em 1983, com o desafio lançado então pelo realizador ao músico. Nas notas de uma reedição de “Passion”, Peter Gabriel recordou que começou por querer saber como iria Scorsese filmar aquele “romance controverso” (expressão que ele mesmo usa). E explica que a intenção do realizador era a de “apresentar a luta entre a humanidade e a divindade de Cristo de uma forma poderosa e original”. Então aceitou o desafio ao entender o empenhamento de Scorsese “no conteúdo espiritual e na mensagem”. Assimiladas e depuradas, as músicas daquela região traduzem de facto as intenções do realizador. Juntando contribuições de músicos como Baaba Maal, Youssou N’Dour, Nusrat Fateh Ali Khan, Jon Hassell ou dos Musiciens du Nil, “Passion” revelar-se-ia contudo mais do que uma mera banda sonora. A versão que escutamos em disco junta a música que ouvimos no filme a ideias que surgiram numa etapa complementar de trabalho, garantindo ao todo das composições um sentido de coesão que confere a todo o alinhamento uma unidade maior do que o que poderia nascer de uma recolha e ordenação do material musical usado no filme.

A importância histórica desta banda sonora não decorre apenas deste labor adicional, que garantiu a “Passion” uma identidade de álbum, mas também do facto de todo este processo ter aberto as bases para uma ligação mais profunda de Peter Gabriel aos universos da world music, nele fazendo nascer então um dos maiores editores e divulgadores de sons de outras latitudes. “Passion”, de resto, assinalou a estreia da editora Real World – do próprio Peter Gabriel – que se revelaria uma das forças maiores da edição na área da world music daí em diante. O álbum surgiu acompanhado por um disco “complementar”, “Passion Sources”, com algumas das gravações reunidas na etapa de pesquisa.