Há biografias que nos agarram às páginas de um livro como tantas vezes o faz bom romance de ficção. É o caso do detalhado e muito bem escrito retrato de vida de Ney Matogrosso assinado por Julio Maria, jornalista que dedicou cinco anos a estudar não apenas os discos e páginas registadas na imprensa, mas a visitar lugares, a descobrir notas quase esquecidas, a conhecer pessoas, a saber a fundo quem é afinal um dos nomes maiores da música do nosso tempo. 

História que parece ter argumentos tão invulgares que só na ficção poderiam ter ocorrido, a vida de Ney Matogrosso envolve uma juventude num ambiente familiar dominado por um pai militar e intransigente, uma fuga para uma liberdade que passou pelo cumprimento do serviço militar no Rio de Janeiro e primeiros trabalhos (bem longe da música) em Brasília, a descoberta de uma identidade e os choques com uma moral vigente em tempos de uma ditadura militar sob a qual, na verdade, deu não só os primeiros passos no mundo artístico (teatro e cinema antes da música) e acabou mesmo por gerar um fenómeno de sucesso com os Secos & Molhados, banda que gerou um importante episódio de profunda relação não apenas na música, mas também na forma de a apresentar, jogando com coordenadas de género, sexualidade e também ecos dos povos originários pouco habituais em terreno pop/rock por aqueles dias. Aqui quem quiser continuar a explorar as memórias dos Secos & Molhados pode complementar esta leitura com a recente nova versão de “Primavera nos Dentes”, de Miguel de Almeida. Mas a biografia de Julio Maria garante já um retrato bem profundo desta etapa na vida e obra de Ney Matogrosso.

O livro de Julio Maria visitou os espaços onde Ney Matogrosso cresceu. Foi a Bela Vista do Mato Grosso do Sul, à vila militar onde viveu os anos da adolescência e o quartel que o acolheu como soldado no Rio de Janeiro. Conta depois com detalhe o percurso dos Secos & Molhados e, depois da separação da formação clássica do grupo, investe no relato da criação (bem informada) de cada um dos seus discos a solo, enquadrando cada álbum no tempo em que nasceu, no percurso artístico do protagonista e na história dos relacionamentos pessoais e profissionais que as canções foram fixando. A música e o mundo ao seu redor, as dimensões amorosas e espirituais, assim como os contextos sociais e políticos em que toda a narrativa evolui, encaminham-nos entre os discos e digressões, com mais detalhes nos anos 70 e 80 do que no percurso posterior aos anos 90. Mesmo assim nada fica de fora. E convenhamos que são poucas as biografias com tão bela escrita… Ney Matogrosso passou por Óbidos na mais recente edição do Fólio e falou sobre este livro que, na edição brasileira original, podemos encontrar entre nós.  Não há ainda uma edição portuguesa. 

“Ney Matogrosso – A Biografia”, de Julio Maria, é um volume de 512 páginas em capa mole, numa edição pela Companhia das Letras (ed. brasileira).

Uma resposta a “Um retrato completo (e muito bem escrito) sobre Ney Matogrosso”

  1. Olá Nuno já que estamos a falar de edições brasileiras, permita-me sugerir-lhe um livro recente que eu acho que vai gostar de ler. Chama-se Do Vinil ao Streaming do autor Daniel Setti.

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