A ideia da quebra de barreiras, da diluição de fronteiras, quase sempre deu resultados interessantes na história da música. Seja quando Gershwin levou o jazz às salas de concertos, há precisamente 100 anos, com “Rhapsody In Blue”, quando o rock resolveu dançar com os ecos mais recentes da club culture com os Stone Roses, Happy Mondays ou Primal Scream, quando Prince assimilou formas pop/rock a uma escola de matriz soul e funk entre “1999” e “Purple Rain”, a coisa foi sempre interessante. O jazz vive, atualmente, um momento de vibrante vitalidade em várias frentes. E esta lógica de vida alheia a muros e fronteiras tem sido aqui uma tónica que, entre outras consequências, promove a comunicação para novos públicos. Basta escutar as pistas por detrás de recentes criações da portuguesa Maria João, os caminhos com vistas largas de um Salvador Sobral ou, ainda entre nós, os Mazarin que recentemente estrearam a nova editora Now Jazz Agora. Podemos ir a Londres para (literalmente) dançar ao som de uns Sons of Kemet ou The Comet is Coming, ou até mesmo encontrar a presença do jazz entre algumas das criações dos enigmáticos e sedutores Sault. E, porque não, notar os estatutos internacionais entretanto conquistados por figuras como Benjamin Clementine ou Kamasi Washington… Pois convém não deixar de lançar regularmente atenções sobre França, pátria de importantes tradições jazzísticas e onde este universo marcou presença em percursos de vários nomes maiores da canção popular (que tal um percurso entre os primeiros discos de Gainsbourg?). Pois regressemos a França, desta vez para confirmar, no seu mais recente álbum, uma voz que merece estar sob os nossos radares: Marion Rampal.

Nascida em Marselha em 1980, cresceu numa casa que tanto escutava Michel Legrand como Nat King Cole ou George Gershwin. Cantou num coro, teve uma banda pop/rock nos anos 90 (os Wesh Wesh) até que, aos 19 anos, descobriu a cena jazz da sua cidade natal, alargando novos azimutes ao gosto, abrindo caminho a novas experiências. Matriculou-se no Institut musical de Formation professionnelle, vincando uma rota profissional que gerou um primeiro disco a solo em 2009, num percurso que nunca fechou a porta a colaborações tendo então andado pelas estradas com vários coletivos, cativou atenções de figuras várias, entre as quais um dos seus mentores, Archie Sheep, criando, com o velho companheiro dos tempos dos Wesh Wesh, François Richez, o duo pop/folk We Used to Have a Band. Como que não houvesse por aqui já suficiente coleção de rotas e destinos por vários espaços, a obra de Marion Rampal assimilou ainda tanto ecos dos blues como do cabaret berlinense, este em parte refletido no alinhamento do álbum “Bye Bye Berlin!”, de 2018. 

“Oizel”, que representa o seu sexto álbum, surge um ano depois de um single no qual Marion Rampal (que se assume principalmente como autora das suas canções) apresentou uma versão de “Don’t Think Twice It’s Alright” de Bob Dylan. Criado em parceria com o guitarrista Matthis Pascaud, partilhando o protagonismo vocal com Bertrand Belin em “Des Beaux Dimanches”, o álbum não só esbate noções de fronteira entre géneros musicais (jazz, mas também folk, pop, e alguns trilhos cénicos mais exploratórios) como baralha uma vez mais quaisquer normas e conceitos, apresentado um disco que desafia quaisquer tentativas de categorizarão. Jazz, sim. Mas não só, herdando pistas pelas quais volta a desenhar um caminho que, mesmo não-alinhado, se revela potencialmente sedutor para várias escolas de formação de gosto. Reconhecida entre pares – afinal venceu a categoria vocal nos Victoire du Jazz 2022 -, Marion Rampal tem neste álbum onde se cruzam luminosidade e sustentação, onde se convocam aves e outras imagens, uma coleção de canções que pode ir bem para além dos espaços de comunicação do jazz. Belas canções, cenografias elaboradas, e uma voz com assinatura, fazem deste álbum um disco que vale a pena descobrir. 

“Oizel”, de Marion Rampal, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Les Rivieres Souterraines

Uma resposta a “Marion Rampal “Oizel””

  1. […] largas) que habita a França dos nossos dias e que, nas últimas semanas, nos deu discos como “Oizel” de Marion Rampal, “Mères Océans” de Christophe Panzani ou “Keep It Simple” de Yann […]

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