Depois da surpresa de “Toma o Comprimido”, que passara fugazmente pela televisão e pela rádio em 1981, as edições em disco entre 1982 e 83 colocaram em cena uma figura como o panorama pop português nunca antes tinha conhecido. Se a ideia de arco entre Braga e Nova Iorque descrevia uma ideia diferente, o apelo urbano da música e a familiaridade festiva e rural das palavras e melodias, fazia de António Variações uma presença que rapidamente transcendeu o estranho e se tornou convívio.

Apesar do silêncio discográfico que caracterizara os primeiros anos da ligação de António Variações à editora que o chamou ao seu catálogo ainda em finais dos anos 70 – e continua ainda por conhecer a luz do dia o registo da mítica sessão de trabalho que o poderia ter apontado a um rumo mais próxima do folclore ou da canção ligeira – os meses que viveu entre 1982 e 1983 levaram o cantor, então já com 38 anos, a um patamar de rara unanimidade e popularidade. O single de estreia “Estou Além” / “Povo Que Lavas no Rio”, que tanto inscrevera um episódio marcante na história das electrónicas na pop nacional e levantara um importante debate sobre a criação de novos pontos de vista sobre o fado, colocara nas bocas do mundo o mesmo vulto do qual havia memória de uma fugaz atuação ao som de “Toma o Comprimido”, mas então sem consequência discográfica, ocorrida um ano antes, no “Passeio dos Alegres”, de Júlio Isidro, na RTP. Meses depois desse single, o álbum “Anjo da Guarda” (1983), gravado com contribuição de vários, músicos, entre os quais Vitor Rua e Toli César Machado (que integravam os GNR) ou José Moz Carrapa, fixava definitivamente uma visão pop diferente que valeu aquela frase lapidar: entre Braga e Nova Iorque. Seguiu-se um ano intenso na estrada, de Norte a Sul, concerto atrás de concerto, circulando pelos mais diversos palcos e lugares, sublinhando a narrativa de adesão à sua música e figura que cruzava gerações, geografias, rompendo os habituais padrões de gosto nestas coisas da música popular.

Terminado esse ciclo era chegado o momento de criar um novo capítulo. E de facto, entre as cassetes caseiras pelas quais ia ensaiando e desenhando as linhas que o conduziam às canções, não faltavam possibilidades. Havia uma canção inspirada por uma funcionária da editora (“Maria Albertina”), uma outra sobre o clima de temor que a geopolítica de então lançava sobre todo o mundo (“Guerra Nuclear”), um potencial sucessor da estival “Onda Morna” (“Gelado de Verão”), olhares sobre a vida, o quotidiano, os relacionamentos ou a sua própria identidade (“A Culpa é da Vontade”, “Mudar de Vida”, “Não Me Consumas”, “Na Lama”, “António”), memórias minhotas (“Ao Passar Por Braga Abaixo”, “Adeus Que Me Vou Embora”) ou até mesmo breves rascunhos de uma reflexão sobre o envelhecimento (“Rugas”) ou um questionar do futuro (“Quero É Viver”)… Havia ainda rascunhos em inglês (“Give Me a Little Time”) e, de outras vivências em palco nos tempos dos Kamikaze, mas fixada em cassete, um longo retrato de um amigo a descer o Chiado (“Ruby Rudy”). Na verdade não foi por nenhuma destas gravações caseiras que caminharam as suas escolhas na hora de regressar a estúdio para criar um segundo álbum, deixando-as então guardadas em cassetes das quais sairiam, anos depois, temas que ganharam forma com Lena d’Água, os Humanos ou Marisa Liz. 

Se para criar o álbum de estreia tinha contado em estúdio com elementos dos GNR e de outros parceiros como José Moz Carrapa, desta vez António Variações tinha consigo novos parceiros. Com ele estavam desta vez convidados como Eugénia Lima (acordeão) e Paulino Vieira (guitarra) e, como banda de apoio a toda a gravação, elementos dos Heróis do Mar: Paulo Pedro Gonçalves, António José de Almeida, Carlos Maria Trindade e Pedro Ayres Magalhães, com estes últimos a assumir a direção musical e produção. Em relação a estes últimos vale a pena lembrar que estava entre amigos já que, poucos anos antes, ainda em finais dos anos 70, António havia passado por uma audição para o lugar de vocalista dos Corpo Diplomático, a banda cujo fim abriu caminho ao núcleo fundador dos Heróis do Mar. E Rui Pregal da Cunha, a voz dos Heróis do Mar, que viveu de perto os ensaios na Cruz Quebrada que precederam estas sessões, chegara a ser convidado (embora não tenha podido comparecer) para acompanhar António, juntamente com Dino, para a célebre atuação no “Passeio dos Alegres” em 1981. 

Mas o lote de músicos não trazia às sessões em Paço de Arcos a única das novidades mais visíveis. Embora a sua aparência física não o sugerisse, a saúde de António estava contudo já visivelmente debilitada quando, em fevereiro de 1984, as sessões em estúdio começaram a ganhar forma, o que condicionou o próprio ritmo dos ensaios (que decorreram, antes, na Cruz Quebrada) e as próprias gravações. Os músicos e demais profissionais que partilharam com ele estes dias recordam um processo feito com muito esforço, uma tosse muito presente, acabando por vezes os takes com o cantor ofegante. Sentia-se tensão, alguma em parte atribuída ao facto de entre o alinhamento a ser gravado figurar “Deolinda de Jesus”, uma canção sobre a própria mãe de António que, contou quem ali esteve, o deixava em lágrimas. Foram pouco mais de 20 dias de trabalho em estúdio, com uma reta final (dedicada à mistura) com a sua presença mais espaçada.

Terminado, o álbum mostrava novos caminhos para uma mesma voz criativa. Sob produção de Pedro Ayres Magalhães e Carlos Maria Trindade, valorizando mais ainda que no disco de estreia a presença dos sintetizadores, “Dar e Recber” aprofundou, com arestas sonoras bem trabalhadas, a construção de um invulgar retrato pop de uma figura de percurso raro. Das memórias de infância no Minho (a mãe, as romarias, os ditados populares) às vivências urbanas que somou depois entre várias geografias, o álbum mostrava-o a refletir sobre afetos, vivências, comportamentos, juntando desta vez às suas palavras as de Fernando Pessoa que escutamos em “Canção”. A “Canção de Engate” foi escolhida como tema de avanço para as rádios, surgindo numa altura em que António Variações estava já internado. A arte final da capa do álbum foi-lhe mostrada no quarto do hospital. A edição avança. Mas, na madrugada de 13 de junho, quando a cidade de Lisboa se deitava depois de uma noite de Santo António, a mais rara voz da pop portuguesa deixava-nos.

As vendas não acompanharam o entusiasmo que abraçara o álbum anterior. Momento, contexto e, sobretudo, estigma, não deram ao álbum a mesma relação popular conquistada um ano antes por “Anjo da Guarda”. Na verdade foi preciso esperar pela versão da “Canção de Engate” pelos Delfins e pelo efeito de reativação da memória criado por um ‘best of’ lançado já nos anos 90 para que as canções de “Dar e Receber” chegassem a um mesmo patamar de reconhecimento entre a obra de António Variações. A longa caminhada envolveu ainda uma reedição, no ano 2000, com um tema extra destas mesmas sessões de fevereiro de 84 (“Minha Cara Sem Fronteiras”) e um processo de redescobertas coadjuvado por versões ou o surgimento de inéditos por Lena d’Água, Humanos ou, mais recentemente, Marisa Liz. Estas foram paragens de um trajeto talvez demasiado longo mas, afinal, justo para um dos grandes álbuns nascidos entre o panorama pop português dos anos 80.

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