Depois de terminada a Earthling Tour, Bowie vivia dias de popularidade e de um respeito alicerçado por feitos somados ao longo dos tempos. A decisão de vender o antigo catálogo à EMI por quase 30 milhões de dólares e a colocação dos direitos de exploração da sua música na bolsa sublinharam a nova face do homem de negócios. O sucesso da Bowie Net, o seu site oficial, com serviço de subscrição, demonstrava uma atenção pioneira para com novas formas de comunicação. Mas, curiosamente, na hora de fazer nova música, a inspiração veio do passado. Em primeiro lugar reencontrou-se com Tony Visconti, com quem não trabalhava desde que o deixara de fora das sessões de “Let’s Dance”. Em estúdio, com Reeves Gabrels a co-assinar a criação das novas canções, um novo álbum surgia de forma distinta dos imediatamente anteriores “1.Ouside” (1995) e “Earthling” (1997). Ou seja, em vez da experimentação, a opção fazia-se pelo reencontro de formas mais tradicionais tanto na escrita como na moldagem das canções. 

E assim nasce “hours…”, disco que acabou reconhecido como herdeiro natural do clássico “Hunky Dory” (1971), mas no qual Bowie abordava, como nunca o fizera antes, temáticas ligadas ao envelhecimento, à passagem do tempo, à memória, aos sonhos abandonados… Escrevia, como depois explicou, canções para a sua geração, procurando registar ali uma certa inquietude que sentia ser característica dos que atingiram a sua idade. O disco, todavia, falou também claramente aos seus mais novos admiradores. Uma das canções proveio de uma aventura no mundo dos jogos vídeo. E a letra de um dos temas – “What’s Really Happening” – nasceu até de um concurso lançado no seu site. A capa do disco (na qual Bowie recria uma pietà, velando a sua imagem de outros tempos) foi revelada, aos poucos, na Bowie Net. E o próprio álbum esteve disponível para download alguns dias antes do lançamento no mercado convencional.

Editado em setembro de 1999, o aperitivo para o álbum trazia-nos um Bowie como há muito se não escutava (completamente diferente de tudo o que nos havia dado nos anos 90. Perfeito primeiro porta-voz daquilo que o novo álbum propunha, o tema “Thursday’s Child” foi assim o primeiro som da mudança e, ao mesmo tempo, a canção que estabelecia o patamar introspectivo que o álbum depois revelaria em pleno. Apesar do discurso de Bowie ter alertado para o evitar de leituras autobiográficas nesta e outras canções de “hours…” (mas vale aqui a pena lembrar toda a história de declarações e contradições que sempre ajudaram a turvar visões absolutamente objetivas sobre significados nos seus discos), a ideia da personagem que encara o passado, olha o futuro e reflete sobre a vida naquele instante, como a soma do que foi e o principio do que vai ser, passa por aqui. Esta é das canções de Bowie que mais nos permite mergulhar na sua aceitação do envelhecimento, do arrumar de velhos episódios de maior agitação pessoal e social, temática que regressaria em álbuns (e telediscos) futuros. De resto, o teledisco que acompanhou a canção, deixava bem explícita a ideia de um olhar lançado rumo ao passado numa encenação usando espelhos e um ator que assegurava a presença do “eu” num outro tempo (estratégia que, com outra solução narrativa, voltaria a ser adoptada, 14 anos depois, em “The Stars Are Out Tonight”).

O título, “Thursday’s Child”, não fala na primeira pessoa (já que Bowie nasceu numa quarta-feira). Sem explicação “oficial”, há quem associe o título da canção a uma referência a “All Tomorrow’s Parties” dos Velvet Undreground (“Thursday’s child is Sunday’s clown”) ou ao título de uma velha autobiografia de Eartha Kitt (esta a versão “encenada” por Bowie no VH-1 Storytellers de 1999). A canção, com pompa sinfonista para banda e teclas, é uma das melhores da colheita Bowie de 90 e o single valeu-lhe um 16º lugar na tabela inglesa e, mais tarde, uma nomeação para um Grammy (Melhor Performance Vocal Masculina no Rock). 

Logo depois seguiram-se, as edições também em single de “Something In The Sir” (na mesma linha) e o mais minimalista “Seven”. No coração do alinhamento destacava-se ainda “Pretty Things Are Going To Hell”, canção que piscava o olho, no seu arranjo, à intensidade dos velhos dias do glam rock. “hours…” abriu assim a derradeira etapa na obra de Bowie, com sucessores em “Heathen” (disco de 2001 que alargava a atitude retrospetiva a memórias da segunda metade dos anos 70) e “Reality” (álbum de 2003 criado sob um horizonte pragmático claro: uma grande digressão de pulsão rock). Pelo caminho foi ainda gravado (mas não editado então) o álbum “Toy” (que olhava mais atrás ainda, a memórias do próprio Bowie nos anos 60). Após um longo silêncio de dez anos, “The Next Day” (2013) encerraria esta etapa de diálogos de Bowie com várias heranças e raízes. E na verdade, em jeito de epílogo, o assombroso “Black star” (2016) não fazia mais do que, mesmo olhando a vertigem do desafio criativo, permitir um reencontro de Bowie com o seu primeiro instrumento (o saxofone) e um dos seus interesses musicais primordiais (o jazz). E assim, há 25 anos, em outubro de 1999, podemos apontar em “hours…” o momento em que o visionário com a mira no futuro de outrora fez as passes com a necessidade de lutar contra o tempo, olhou para trás, e encontrou outra forma de viver a criação no presente. 

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