Ao fim da tarde daquele dia um grupo relativamente pequeno apinhava-se à porta de um centro de artes em Hammersmith (Londres) no qual o maior dos seus dois estúdios de televisão ia, minutos depois, assegurar uma mão-cheia de estreias mundiais. Um novo álbum de David Bowie chegaria uma semana depois mas as novas canções viviam ainda entre o segredo dos deuses. Seria um novo mergulho entre referências pessoais, depois de um “hours” (1999) que piscara aos tempos distantes de “Hunky Dory” ou um “Heathen” (2001), que tinha ecos da etapa berlinense a correr nas entrelinhas? Seria a resposta ao arquivado “Toy” que o álbum anterior não havia sequer mencionado? Ou uma nova visão experimental atenta aos sinais dos tempos como o mostrara “Earthling”, o álbum de 1997 que tinha assimilado o dum’n’bass?… O entusiasmo estava claro entre uma plateia que juntava convidados vindos de todo o lado e, ao contrário do que sucedera no concerto no auditório da BBC em 1999, (poucas) celebridades. Bob Geldof era dos poucos a ser (re)conhecido. Bom, faça-se aqui já um disclaimer… Eu estava lá. E comigo estava o Álvaro Costa. O #TeamBowie da praxe…
A poucos quarteirões do antigo Hammersmith Odeon onde Ziggy Stardust tinha vivido a sua última noite 30 anos antes, o estúdio era agora o palco para uma operação tecnologicamente desafiante. No ano anterior os Korn tinham apresentado um novo álbum na Hammerstein Ballroom em Nova Iorque, tendo transmitido o evento para 37 salas de cinema nos Estados Unidos. E, meses depois, os Bon Jovi tinham protagonizado outra operação semelhante, desta vez com base no londrino Shepherd’s Bush Empire, com transmissão para 14 salas de cinema no Reino Unido e três na Alemanha… Bowie ia ser o rosto e voz de uma operação maior e maios ousada: um evento global. Daria um concerto (apenas para convidados) num estúdio em Londres, com transmissão live para salas por toda a Europa, e retransmissão (em diferido) poucas horas depois para Américas e Ásia, sendo que nestes dois últimos casos a sessão de perguntas e respostas com o músico seria feita em direto.
À hora marcada, com um look rejuvenescido (que caracterizaria a digressão que depois correu mundo), Bowie entrou em cena ao som do clássico “A New Career In A New Town”, juntando duas breves citações a “Song 2” dos Blur e “Rumble” de Link Wray. E depois do aquecimento, de fio a pavio e pela ordem definida pelo alinhamento, apresentou todas as canções do novo “Reality, entre as quais havia dez originais seus e duas versões, uma para “Pablo Picasso” dos Modern Lovers, outra uma canção que George Harrisson tinha criado nas sessões de “All Things Must Pass” mas tinha ido parar à voz de Ronnie Spector: “Try Some, Buy Some”. O álbum revelava um músculo mais rock, como não se ouvia desde os tempos de “Scary Monsters” (1980), com “New Killer Star” e “Never Get Old” a sugerir as edições em single (que se concretizariam). E, ou não fosse um disco de Bowie, não faltavam jogos de contrastes, sobretudo vincados na alma quase folk pop de “Days” ou as tonalidades inesperadas de “Bring Me the Disco King”, uma canção que vinha dos tempos de “Black Tie White Noise” mas que agora conhecia uma orientação diferente, jazzy, mal sabendo nós que abria primeiras portas para os caminhos de edições que chegariam nos seus últimos anos de vida.
Depois do álbum apresentado na íntegra houve a sessão de perguntas e respostas, com questões vindas de vários cantos da Europa, uma ou outra falha técnica e, convenhamos, nenhuma intervenção verdadeiramente memorável (nada como a boa e velha entrevista, cara a cara, naturalmente). Mas antes de cada um ir à sua vida, Bowie voltou ao palco e presenteou quem estava na sala (ou seja, aqui a coisa já não seguiu para os cinemas), com um segundo set no qual tocou velhos clássicos e algumas canções recentes (“Hallo Spaceboy”, “Fantastic Voyage”, “Hang On To Yourself”, “Modern Love”, “Cactus” e “Afraid) e repetiu o novo single, “New Killer Star”…

Foi uma experiência incrível, importante na criação de novos circuitos de distribuição que hoje são sobretudo usados por companhias de ópera e de bailado, mas também um ensaio geral para a segunda mais longa digressão de Bowie, na verdade interrompida perto do final (e a dias de um concerto no Porto) por razões de saúde que depois conduziram Bowie a um silêncio de dez anos interrompido por poucos intervalos, um deles ao vivo ao lado de David Gilmour, outro, no Central Park, com os Arcade Fire, e parcerias em disco com TV on The Radio, Scarlett Johansson, Kashmir e pouco mais. Contudo, apesar da dimensão da operação, o que ali aconteceu a 8 de setembro de 2003 ficou na memória de quem esteve no estúdio em Londres ou em salas de cinema pelo mundo fora. Até que, agora, por ocasião do Record Store Day 2025, eis que finalmente surge fixado num disco o som deste episódio. Neste novo “Ready, Set, Go! (Live, Riverside Studios ’03)” eis que temos agora a gravação da sequência do concerto que nos deu a escutar todo o alinhamento de “Reality”, havendo ainda, a fechar, parte do set adicional, juntando as interpretações de “Hallo Spaceboy”, “Cactus” e “Afraid”. É quase tudo… Faltou apenas o prelúdio e, do set extra, “Fantastic Voyage”, “Hang On To Yourself” e “Modern Love”… Ou seja, se calhar ainda vamos voltar a este concerto, mais ano menos ano, em áudio ou, quem sabe, com o vídeo… Para já, é mais um tesouro do arquivo de Bowie a chegar aos nossos ouvidos.
“Ready, Set, Go! (Live, Riverside Studios ’03)”, de David Bowie, está disponível em 2LP e CD, numa edição da ISO Records para o Record Store Day. Por enquanto, salvo “New Killer Star”, este registo ao vivo ainda não está disponível nas plataformas de streaming.





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