O mito e as realidades de Woodstock, numa visão de Ang Lee que chegou 40 anos depois

Ao contrário do filão dos ‘biopics’ de músicos, que certamente vai ser ainda mais adubado depois do sucesso maior desse filme menor que é “Bohemian Rhapsody”, a filmografia de ficção inspirada por acontecimentos marcantes na história da música não tem sido, de todo, um terreno fértil em produções para o grande ecrã. De facto pode ser mais interessante a exploração de uma personagem do que a de um momento. A menos que haja uma ideia capaz de alimentar mais do que uma mera recriação de acontecimentos, como o fez Todd Haynes quando olhou para o ‘glam rock’ sob um prisma de colagem e de cruzamento de referências em “Velvet Goldmine”. De certa forma, em “Febre de Sábado à Noite”, John Badham fixou num filme um ambiente urbano que se preparava para assistir à massificação do fenómeno do ‘disco sound’. Porém será excesso de entusiasmo ver esse como um filme sobre o ‘disco’, apesar de ter desempenhado um papel fulcral no alargamento colossal da sua popularidade ao longo de 1978. Com um lugar na história da música e das próprias mutações da sociedade, o festival de Woodstock lançou variadas heranças na história do cinema (uma delas o documentário de Michael Waldleigh que o fixou na memória coletiva). Mas, curiosamente, em meio século, o festival não foi motor para muitos exercícios de ficção. E o único que deu que falar, mesmo tendo sido acolhido sob entusiasmo algo tímido, surgiu sob a direção de Ang Lee em 2009, data que não esconde o valor de comunicação que então poderia representar o assinalar dos 40 anos do festival.

“Taking Woodstock” é baseado na biografia de Eliott Tiber, que terá sido o responsável por levar até Bethel o festival depois deste ter sido “expulso” do local para onde estava previsto. Eliott é filho dos donos de um decadente motel na pequena cidade que acolheu o festival no verão de 1969. Figura acinzentada, contrastando com aqueles que em pouco tempo irão “invadir” a cidade, divide os seus conterrâneos, uns deliciados com as oportunidades de negócio e o próprio espírito dos festivaleiros, outros eternamente agarrados a “valores” sempre com vontade em chocar de frente com tudo o que seja novo ou diferente.

É pelo prisma de Eliott que assistimos aos conflitos (na própria família ou entre vizinhos) e acompanhamos a progressiva escalada de caos em volta do motel… Motel que, vale a pena lembrar, acaba por ser uma das fontes de alguns momentos de comic relief num filme que tem tanto de drama e recriação histórica como de comédia.

O melhor de “Taking Woodstock” reside no modo como Ang Lee aceita a herança (marcante) das imagens do documentário de Michael Waldleigh, que no fundo é a razão pela qual conhecemos as imagens do festival (e, convenhamos, a chave da sua própria mitificação). Não só há recriações dos ambientes vividos entre a multidão, como vemos inclusivamente equipas de filmagem a captar momentos que conhecemos (as freiras a chegar, o homem que limpa as casas de banho)… Isto sem esquecer a divisão da janela de projeção em mais do que uma imagem, que constituiu uma das mais vincadas características formais desse filme de 1970.

Ang Lee leva as suas personagens sobretudo entre as ruas da cidade, o motel e o recinto do festival. Só vemos o palco quando está a ser construído e, no fim, a olhar para um recinto já quase vazio de gente. A música cruza por vezes o ar (a dada altura Eliott chega ao recinto ao som de Arlo Guthrie), mas é sobretudo aqui a razão de ser da história. Outra das interessantes características do filme é o sublinhar da ideia que havia toda uma operação financeira já montada antes do festival. Michael Lang (recriado depois de um casting tão feliz que ninguém diz que não é o próprio) chega à cidade com um batalhão de advogados e financeiros… Antes do rock’n’roll é claro que houve dólares em jogo. Através de um personagem secundário, interpretado por Emile Hirsch, o filme junta ao contexto o peso da presença da Guerra no Vietname na sociedade americana de então.

A sexualidade do protagonista e a existência de uma personagem trans (que assume a segurança do perímetro em torno do motel) juntam aqui importantes elementos de representação de diversidade à história de Woodstock que, pelos relatos e imagens do documentário, falava de liberdade, libertação, paz e amor e por aí adiante, mas num quadro identitário sempre normativo. Sinais dos tempos (em que o documentário nasceu)? Talvez… Mas se nos lembrarmos bem os motins de Stonewall – que de certa forma lançam o movimento de luta pelos direitos LGBT – aconteceram no mesmo verão da chegada à Lua e de Woodstock. Mas, lá está, umas revoluções levam mais tempo a ter consequências do que outras. E “Taking Woodstock” – onde os motins de Stonewall são aludidos num telefonema do protagonista – acabaria por juntar, 40 anos depois, essa outra memória desse mesmo verão à narrativa de transformação de que Woodstock se fez referência.

“Taking Woodstock” teve edição em Portugal em DVD pela Valentim de Carvalho. Uma edição em Blu-ray, com legendas em francês e espanhol, está disponível no mercado britânico.

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