E chegou a hora de celebrar os 40 anos dos Orchestral Manoeuvres In The Dark

Uma caixa com cinco CD e dois DVD evoca memórias de 40 anos de vida de um grupo pioneiro da pop eletrónica. A caixa inclui uma coleção de material de arquivo até agora inédito. E chega numa altura em que os OMD têm, hoje e amanhã, Lisboa e Porto como primeiras datas de uma digressão de celebração.

Banda fulcral entre a primeira geração da pop electrónica britânica, contemporâneos de nomes como os Human League, The Normal, Tubeway Army ou Cabaret Voltaire, os Orchestral Manoeuvres In The Dark (mais frequentemente referidos como OMD) eram os diferentes entre os diferentes na Liverpool pós-punk que então via nascer outras figuras que fariam história, dos Teardrop Explodes aos Wah!, passando pelos Echo & The Bunnymen ou Dead or Alive. Apenas acompanhados por instrumentos eletrónicos (as exceções a dada altura apenas autorizadas a um baixo e bateria), os OMD partiam de uma admiração pelos Kraftwerk e outros visionários alemães e procuravam uma nova linguagem ao serviço da canção pop. 

O seu single de estreia, Electricity (em 1979), foi o sexto editado pela Factory Records. Contudo, a carreira dos OMD fez-se depois, essencialmente, na Dindisc, uma pequena editora sob distribuição da Virgin Records. Os seus dois primeiros álbuns, Orchestral Manoeuvres In The Dark e Organization, ambos editados em 1980, lançaram pistas e primeiros sinais de uma vida dupla, tranquilamente dividida entre gosto em criar hinos pop e a curiosidade pelas potencialidades das novas ferramentas ao serviço da música electrónica. E não houve álbuns tão capazes de expressar essa dupla vida como o magnífico Dazzle Ships, de 1983, e Architecture & Morality, de 1981..

Comecemos com Architecture & Morality. O título do álbum encerra, por si só, um programa de intenções, como que querendo mostrar como se concilia o que aparentava ser inconciliável. O rigor matemático da eletrónica e a sede de descoberta, aleatória, da criação artística. Menos sombrios que contemporâneos como os Cabaret Voltaire ou John Foxx, menos efusivos que os Human League (reinventados em versão 2.0 para Dare!), A Flock Of Seagulls ou Depeche Mode), menos “teatrais” do que os Soft Cell ou Fad Gadget, os OMD pareciam viver numa terra de ninguém, não equidistante das linhas mestras da pop eletrónica em erupção, mas orientados segundo um gosto peculiar que, no texto que acompanhou a “collectors edition”, o jornalista Paul Morley descrevia como o que poderia ser o futuro da Joy Division, “caso Love Will Tear Us Apart tivesse sido o começo e não o fim”. O álbum destaca-se dos muitos que essa geração pop então apresentou, propondo uma sugestão temática em torno de um ciclo de canções com uma figura (e sua simbologia) como protagonista: Joana d’Arc. Um fascínio pela mulher, a sua história, a relação com a fé e religião, traduz-se numa visão que não é de reflexão histórica, mas de recontextualização da sua imagem e heranças num futuro sem data. E mesmo aí, mais que um retrato concreto, optam por uma visão impressionista que, da história, herda sobretudo sugestões de uma vida armadilhada por um sentido de dever ditado mais pela emoção que pela razão.

Este não é o álbum de pop eletrónica “típico” do seu tempo, sobretudo numa banda que gozava já de uma certa visibilidade mainstream, tendo já colhido primeiros êxitos, em 1980, com Messages e Enola Gay e que conseguiu depois levar os três singles extraídos de Architecture & Morality (sucessivamente Souvenir, Joan of Arc Maid Of Orleans, ao top five britânico). Canções e instrumentais texturalmente ricos em figuras nascidas de uma exaustiva exploração das potencialidades do mellotron e técnicas de estúdio empregando o uso de fitas (muito em voga na música concreta e junto de bandas de rock progressivo nos anos 70) fazem um álbum que traduz o seu tempo.

Architechture & Morality foi um êxito colossal. Vendeu, vendeu, vendeu… E no seguinte, Dazzle Ships foi, literalmente, como se os OMD tivessem resolvido aplicar a velha máxima: “e agora para algo completamente diferente”… E nele surgem marcas de uma mudança de orientação rumo a espaços onde a experimentação ganhava claro protagonismo. O que, contudo, não implicou a ausência de canções pop no alinhamento de um disco que, na verdade, soube dosear bem os seus momentos de design mais atípico com outros nos quais a canção pop eletrónica emergia, se bem que enquadrada no contexto temático que o disco sugeria. Dois singles chegaram mesmo a ser extraídos do alinhamento de Dazzle Ships – em concreto Genetic Engineering e Telegraph – ambos tendo gerado novos episódios de algum sucesso.

Inspirado por um quadro de Edward Wadsworth – Dazzle-ships in Drydock at Liverpool, que se pode ver na National Gallery of Canada, em Ottawa (Canadá), e que ditou inclusivamente as linhas que Peter Saville levou ao próprio trabalho gráfico do disco – Dazzle Ships é um álbum no qual os OMD tanto expressam o seu desejo em acolher mais claramente uma dimensão experimental que era naturalmente associada à história da música eletrónica como representa o momento em que, mais do que nunca, dão voz a uma atitude política. Atitude que não passa por uma rendição da sua música aos códigos mais habituais da canção política, mas, antes, a uma construção temática que reflete temáticas do presente, nomeadamente os efeitos da guerra fria sobre uma Europa (então) dividida em dois grandes blocos.

Esteticamente este é um disco que convoca a um espaço de construção pop eletrónica uma série de ferramentas e práticas mais habituais nas músicas de vanguarda, nomeadamente a manipulação de fitas, criação de módulos repetitivos, colagens de sons e uso de gravações de sons de rádio como material musical. Passados por um “filtro” OMD manifestam-se aqui heranças que vão de Stockhausen aos Kraftwerk, passando pelos minimalistas norte-americanos. Na altura este cocktail foi de difícil digestão para os muitos milhares que haviam feito de Architecture & Motality um êxito de vendas. Dazzle Ships, aí, foi uma calamidade… Mas agora é cada vez mais apontado, sobretudo entre músicos, como o disco de maior referência entre a obra dos OMD.

A necessidade de ultrapassar o colapso das expectativas na sequência de Dazzle Ships conduziu os OMD a um caminho de progressiva cedência nas vitaminas mais experimentais em favor de um foco cada vez mais evidente numa pop acessível que então os reafirmou como força mainstream global. Assim foi com os singles extraídos dos álbuns Junk Culture (1984) e Crush (1985). Em 1986, contudo, alguma instabilidade interna dominara a criação de The Pacific Age, que mantém firme a vontade em comunicar música para as massas. É contudo na sequência deste disco que Paul Humphreys deixa o grupo, cabendo a Andy McCluskey a continuação da obra nos anos 90 e que se traduz num disco com algumas notas de alguma maior frescura (Sugar Tax, 1991) e dois outros discos de interesse menor (Liberator e Universal, respetivamente de 1993 e 1996). E seguiu-se o silêncio.

Paul e Andy reencontraram-se em 2007. Como tantos outros regressos, começaram pela estrada, recordando na íntegra o seu álbum histórico de 1981 Architecture and Morality e chegando mesmo a editar um registo em disco dessa digressão (o primeiro live album da discografia dos OMD). Só então decidiram o passo seguinte. E em History Of Modern (2010) encontraram o primeiro passo de uma nova etapa que os tem visto em constante atividade, com sinais novamente promissores em English Electric (2013), tendo em 2017 editado em The Punishment of Luxury o seu melhor disco desde os dias de glória em meados dos oitentas.

A matriz kraftwerkiana é ali novamente bem evidente (de resto assim acontece desde o seu single de estreia, Electricity, de 1991 e repete-se agora, sob clima festivo, em Art Eats Art), mas são igualmente claras as visões pop bem elaboradas de Architecture & Morality e Junk Culture, assim como pontuais episódios de fuga a soluções mais normativas como sucedeu no magistral Dazzle Ships. E assim, tal como acontece entre grandes veteranos da cultura pop/rock, de McCartney a Dylan e outros mais, também entre os pioneiros de outrora da pop eletrónica o passar do tempo mostra que nem todas as boas ideias e canções surgem em início de carreira.

Agora chegou o momento de celebrar os 40 anos. Quarenta sobre o momento em que Electricity chegou ao vinil via Factory. E assim nasce Souvenir, uma caixa que junta cinco CD, dois DVD, gravuras (que evocam capas de singles), uma reprodução de um poster promocional do single Souvenir (1981) e um livro que reúne as capas dos seus discos desde o início.

Os dois primeiros CD contam a história integral dos OMD no formato de single, juntando todos os que editaram entre Electricity e o mais recente Don’t Go, já de 2019. Os CD 4 e 5 são mergulhos no arquivo recuperando as gravações de dois concertos, um de 1983 (digressão Dazzle Ships) no Hammersmith Odeon e o outro de 2011 no Mermaid Theatre, igualmente em Londres.

O maior tesouro deste lote é o CD 3, no qual o grupo apresenta um conjunto de 22 temas inéditos originalmente gravados entre 1980 e 1990 e que recentemente foram localizados nos arquivos da EMI. Aqui tanto há canções concluídas – como Brand New Science (de 1981) ou Dumbomb (de 1986), que poderiam ter surgido nos alinhamentos de álbuns ou lados B de singles desses tempos. Assim como há esboços, ideias, com algum desenvolvimento, mas ainda longe de peças concluídas, como a Violin Piece (de 1982) ou Untiteled 2 (de 1981, mas que parece ter servido de ponto de partida, anos depois, para History Of Modern). Há temas que denunciam claramente o tempo em que surgiram e a que disco poderiam estar associados: bons exemplos estão em Radio Swiss International, o mais “sujo” Guitar Trash, o experimental SMPTE ou Untiteled 3 (todos eles de 1982) que não deixa dúvidas sobre um berço no tempo em que Dazzle Ships ganhava forma. Nice Endings, de 1981, mostra contudo que o caminho para esse álbum de 1983 começara bem antes das sessões que deram forma a muitas das suas canções. O breve Unreleased Idea (de 1981) éfruto das mesmas demandas que geraram Architecture & Morality. Weekend (1985) e Cajun Moon (1986) traduzem , respetivamente, familiaridade com as identidades sonoras ainda ligadas aos álbuns Junk Culture e Crush.  Já Organ Ditty, Ambient 1, Unused 1 ou American Venus, (de 1980) traduz sons e formas que ligamos aos dois primeiros álbuns do grupo, o último a olhar já em frente, rumo a cenografias mais elaboradas que surgiriam no álbum de 1981. E há canções que adivinham futuros, como, por exemplo, Liberator, assinada por Andy McCluskey em 1985, que levanta o véu sobre caminhos que ele mesmo exploraria depois em Sugar Tax.

Ao vivo no Theatre Royal, em 1981 (no DVD 1 de ‘Souvenir’)

Os dois DVD acrescentam depois episódios desta história reunindo a música às imagens. Um dos DVD é uma coleção de atuações em vários programas da BBC captadas entre 1980 e 1996. O segundo DVD começa por apresentar a gravação (histórica) de um concerto em Londres em 1981. Segue-se um programa de televisão de 1985 que cruza imagens de uma atuação ao vivo no em Sheffield com entrevistas (entre as quais a de uma antiga professora de Andy e Paul). O DVD 2 inclui ainda Crush – The Movie, um “filme” (na verdade mais uma coleção de telediscos e atuações filmadas) que ilustra todos os temas do álbum de 1985.

Não teria sido má ideia um DVD 3 com os telediscos… E um DVD 4 com o concerto da digressão de 1983 (o áudio do CD 5 dá vontade de ver o que se passava)… O livro é mais feito de imagens e de textos, até porque acaba de sair um outro volume sobre a história do grupo. E em suma Souvenir cumpre bem o papel de celebrar 40 anos. Recorda gravações históricas, juntando muitos inéditos de arquivo. E se a coleção do CD 3 se apresenta com o título Unreleased Archive Vol 1, a coisa sugere que mais poderá haver adiante…

“Souvenir”, dos OMD, é uma caixa de 5 CD e 2 DVD disponível numa edição da UMC – Virgin Domestic. O conteúdo dos CD está disponível nas plataformas de streaming.

Os OMD abrem hoje na Aula Magna, em Lisboa, a digressão que assinala os 40 anos de vida do grupo. Amanhã atuam na Casa da Música, no Porto.

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