
Passam hoje dez anos sobre o dia em que o António Sérgio nos deixou. Dez…
Aprendi a ouvir muita da música de que gosto escutando-o na rádio. Quantas cassetes gravei com momentos das emissões – sobretudo do “Som da Frente” – para ir ficando com as canções por perto antes de poder comprar os discos… A rádio e as cassetes eram, de facto, grandes amigas de uma carteira para qualquer jovem português num início dos anos 80 em que a economia ainda vivia tempos de dieta. Mas sempre que as poupanças deixavam, lá entrava mais um single ou um LP em casa. E muitos foram descobertos nas emissões de rádio do António Sérgio (nunca o tratei por António, apenas Sérgio).
Bauhaus. This Mortal Coil. Cocteau Twins. Julian Cope. The Sound. Clan of Xymox. Shriekback. Scritti Politti. Bronski Beat. Frankie Goes To Hollywood. The Cure. Love and Rockets. Virginia Astley. Echo & The Bunnymen. Psychedelic Furs. Danse Society. Siouxsie & The Banshees. The Smiths. X-Mal Deutschland. The The. Nick Cave. Einstürzende Neubauten. Violent Femmes. Laurie Anderson… Uns ainda ativos, outros já no plano da memória; uns globalmente reconhecidos, outros pequenos fenómenos de culto; uns mais marcantes, outros apenas um episódio fugaz na história da música popular. Mas em todos algo de comum: descobri-os ao ouvir os seus programas no FM dos oitentas.
Não havia internet e, apesar de alguma informação entre jornais e revistas, ouvir a música nova que fugia ao que a ditadura dos gostos tornava popular não estava, como hoje, à distância de um clic. Ou tínhamos amigos que iam a Londres, ou pedíamos discos em serviços de venda postal… E pouco mais, garantindo-nos os programas do Sérgio a janela que nos mantinha atentos ao que estava a acontecer. Quem ia a Londres emprestava-lhe os discos. Quem os recebia pelo correio também. E o Sérgio tocava-os. A ideia de partilha de informação entre amigos fazia-se assim entre a rádio e quem a escutava.
Não tínhamos um botão para dizer “gosto”… Mas gostávamos. Ouvíamos, gravávamos cassetes, tirávamos os nomes da “lista rebelde”… Com uma voz segura, ensinava-nos o que era o direito à diferença. A criar um gosto. A ser indivíduos. Uma lição pela música. Mas que serve para a vida.
O tempo transformou depois a voz da rádio num amigo. Amigo e companheiro de trabalho nos tempos da XFM. Entrava no estúdio, pouco antes das 10.00 para me render (numa altura em que fiz o horário das 07.00 às 10.00), sempre com uma valente pilha de discos nos braços, um termus com chá e, invariavelmente, uma palavra de boa disposição, comentando muitas vezes a canção que estava a rodar nesse instante. Uma vez por semana deixava-me, de surpresa, de véspera, um single para eu passar… Sim, em vinil, a 45 rotações, para alargar as cores e sabores do que a antena ia dando a escutar.
Gostávamos de cães. E, numa altura em que ensaiávamos num computador o modelo de distribuição de músicas do que seria depois a playlist da XFM, em vez do “A”, “B”, habituais, ele, a Ana [Cristina Ferrão] e eu usávamos nomes de cães. Laika era um deles.
– Então, este tema é ou não uma Laika?
– Ou será Milu? Ou mesmo Rantanplan?
– Esse é claramente Laika…
– Então fica Laika.
Convenhamos que era… alternativo.
Poucos meses antes de termos iniciado as emissões (da XFM) tive a sorte de assistir, ao vivo, e ao lado dele, àquele que certamente terá sido um dos mais marcantes encontros da vida do Sérgio. Foi em 1993. Estávamos em Manchester, em plena convenção In The City, onde se juntavam músicos, editores e divulgadores… Tínhamos partido juntos de Lisboa e levávamos três objetivos na bagagem: comprar discos para a discoteca de uma nova estação de rádio que iniciaria as emissões algumas semanas depois, estabelecer contactos com editoras independentes e… desafiar John Peel a fazer um programa para a “xis”…
Ver o encontro entre os dois foi como assistir ao que mais parecia uma reunião de velhos amigos (mas que até aí não se conheciam), rapidamente a conversa tendo saltado da agenda prática do programa (que de facto existiu em exclusivo para a XFM) para discos e trocas de memórias. Chamavam muitas vezes ao Sérgio o John Peel português… Mas ali perderam-se as fronteiras. O Peel português? O Sérgio inglês?… Fiquei calado a assistir… Foi inesquecível.
Há dez anos, no momento da despedida, preparei em casa uma pequena playlist para levar para a Basílica da Estrela. Entrei com os discos pela sacristia, e coube então escolher apenas um. Havia tempo para apenas uma canção. E aí não há que convocar a razão. Falou a memória da emoção da descoberta, apresentada pela voz dele, de um tema que invariavelmente associei sempre ao Sérgio… Era This Big Hush do álbum Oil and Gold, dos Shriekback… Que, mesmo tendo o padre inicialmente torcido o nariz (porque não era música religiosa), acabou a ressoar na nave principal da Basílica da Estrela… E que som era aquele… Dez anos depois, volto a escutar a canção e lembrar quantas outras mais entraram na minha vida por causa dele… Obrigado Sérgio!
PS. A foto que abre o post foi tirada pelo José Carlos Carvalho (se me não falha a memória) para uma entrevista que publiquei no DN há uns 15 anos… A conversa teve lugar pela noite dentro num dos “poisos” preferidos do Sérgio : o Snob.
Este texto recupera excertos de algumas crónicas que antes publiquei.