O sucessor do menos marcante “Colours” tem como principal colaborador Pharrell Williams. “Hyperspace” revela sobretudo uma vontade em procurar a identidade do cantautor e projetá-la num espaço contemporâneo sem contudo procurar revoluções. Texto: Nuno Galopim

Uma capa pode dizer muito sobre o disco que guarda lá dentro? Pode sim. À primeira vista o novo disco de Beck sugere um ambiente de luzes e cromados, com o título em carateres silábicos japoneses. Ao saber-se do envolvimento de Pharell Williams como principal parceiro criativo (e não apenas produtor) no disco, é natural que se estabeleçam primeiras pontes com eventuais afinidades para com os universos que (via Neptunes) o colaborador de Beck tem estabelecido junto de nomes que vão de uns Daft Punk a Beyoncé.. Um Beck eletrónico, dançável, algo futurista e xpto?… Nada contra… Nada contra, mesmo… Mas nada como escutar os discos antes de tirar conclusões com apenas uma passagem de olhos pela capa e a soma de umas coisas que se ouviu dizer…
O single de avanço, Saw Lightning, lançado em abril, dava conta de ligações mais próximas com os diálogos entre a música da América profunda e um sentido de (re)invenção da canção pop que o próprio Beck operou nos primeiros anos da sua carreira, com resultados sobretudo marcantes em Odelay (1997). E essa memória (recente) era um primeiro senão a essa leitura demasiado rápida da capa do álbum… Vamos olhar outra vez? É que, se calhar, o “programa” visual está lá sugerido. Beck tapa os olhos de uma luz ofuscante… Algo se guarda por detrás dessa luz… É melhor escutar porque talvez haja surpresas ali…
Agora que temos Hyperspace em mãos podemos começar por reconhecer que o single de avanço era pista sem consequência maior no restante alinhamento do disco. E na verdade tudo aconteceu porque o próprio Pharrell Williams sugeriu a Beck que fizesse um disco centrado no âmago da sua identidade e não necessariamente definido pelos jogos de parcerias que pudesse estabelecer. E aqui podemos questionar: afinal onde está esse ponto de partida, numa obra que tanto assimilou o hip hop como a música do Brasil ou os diálogos entre a pop e o funk ao jeito de uma herança de Prince? E aí a resposta veio novamente de Pharrell. Beck é um cantautor. E, juntos, fizeram um disco de um cantautor.
As ferramentas eletrónicas usadas – que se escutam com alguma frequência, é certo – não toldam nunca, contudo, a alma do cantautor que aqui emerge inspirado e seguro. E por vezes mais próximo das memórias de discos como Mutations, Sea Change ou Morning Phase, embora sem a carga de “dor de corno” e a melancolia destes dois últimos. Hyperspace é um disco de maturidade na contemporaneidade. Pharrell Williams operou mais vezes ações de contenção do que de revolução. Ajudou a encontrar um patamar natural e consequente para captar a essência que procurava na identidade de Beck, projetando-a no presente com naturalidade. E basta ver o teledisco que acompanha Uneventful Days, carregado de autocitações, para sentir que o que aqui está é um disco que fixa naturalmente a identidade de Beck (de uma forma bem menos forçada do que ocorreu no menos consequente Colours, de 2017). O que não impede ambos de, numa futura colaboração, apontarem azimutes a uma rota mais celebratória e dançável para criar um herdeiro (também) natural de Mindnite Vultures.
“Hyperspace”, de Beck, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Capitol.