A experiências de uma médium no final do século XIX foram o ponto de partida para uma proposta de música experimental da finlandesa Jenna Sutella num projeto que junta uma narrativa de ficção científica e que, depois de ser apresentado em museus, surge agora em disco. Texto: Nuno Galopim

A presença de Marte e de referências marcianas na música (terrestre) quase sempre seguiu por caminhos mais metafóricos ou simbólicos do que eventualmente narrativos. De meras referências em Life On Mars? De Bowie a 10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte no clássico álbum de rock progressivo de José Cid (no qual o planeta é referencial de espaço para, afinal, nos conduzir à Terra) às visões mais inspiradas pelos significados astrológicos do que astronómicos na suite Os Planetas de Gustav Holst, Marte é na verdade um mundo ainda à espera de visitas mais concretas por parte dos músicos deste terceiro planeta a contar do Sol. Cabe por isso a este intrigante Nimiia Vibié, da artista finalndesa Jenna Sutella, um papel de algum pioneirismo nesta matéria.
O disco, um exercício de música experimental eletrónica com manipulação de vários elementos (alguns deles vocais) imagina exercícios de comunicação entre eventuais seres vivos “achados” na superfície marciana. Esta suposição parte de um exercício de ficção (explicado no booklet), que nos coloca perante a descoberta, por um rover marciano, de bactérias extremófilas, e os resultados de consequentes observações nas quais a eventualidade da comunicação é promovida… Seriam estes os sons dos marcianos? Estariam a comunicar entre si ou connosco?
A ideia tem na verdade uma âncora no passado do nosso relacionamento com Marte. E recua a observações feitas ao telescópio (no final do século XIX) pelo italiano Schaparelli que então criou desenhos nos quais projetou o que viu. Notando algumas linhas na superfície designou-as por “cannali”. Pouco depois o astrónomo norte-americano Percival Lowell tomou estas observações (e a sugestão da designação) por “canais”, subentendendo-os como resultado de um trabalho de construção e, logo, da ação de um povo inteligente. Uma civilização.
Com base nestas suposições, Hélene Smith (1861-1929), uma médium admirada pelos surrealistas – era tida como a “musa” da escrita automática – desenvolveu um conjunto sessões nas quais dizia que conseguia comunicar com os marcianos. Sessões que chegaram a ser acompanhadas por Théodore Flouroy, um psicólogo que as descreveu e, depois analisou, acabando por concluir que não eram mais do que uma quimera.
O “sonho” de Hélene Smith está agora na base da construção de ficção (científica) que definiu a ideia que Jenna Sutella aborda neste disco, no qual explora a ideia de intercomunicação entre máquinas e organismos microscópicos vivos. Se o mero exercício de escuta dá contra de uma intrigante experiência aparentemente abstrata, o folhear do booklet (uma peça de design) transforma Nimiia Vibié numa possível narrativa. Que, depois de apresentada como experiência multimédia em alguns museus, se pode saborear, agora que a música está fixada em disco, como qualquer momento de (boa) descoberta.
“Nimiia Vibié (Sounds of Machine Learning and Interspecies Communication)”, de Jenna Sutella, está disponível em vinil e nas plataformas digitais numa edição da Pan