Coachella merecia uma história mais bem contada

Se por um lado um filme sobre os 20 anos do festival californiano nos mostra que o segredo do seu sucesso está na diversidade e inclusão (que ali moram desde o início), por outro o documentário tropeça nas linguagens da publicidade. Texto: Nuno Galopim

Tivesse o rumo da história de 2020 seguido por outro caminho e, por esta altura, já teríamos ouvido falar dos acontecimentos da edição deste ano, com nomes como Rage Against The Machine, Travis Scott e Frank Ocean como cabeças de cartaz e figuras como Weyes Blood, The Comet is Coming e Lil Nas X entre as muitas anunciadas para ali se apresentarem. O Coachella 2020 está agora apontado a dois fins de semana em outubro. O adiamento não implicou, contudo, a estreia do documentário Coachella: 20 Years In The Desert, que olha para os primeiros vinte anos de vida de um festival que, estreado em 1999, se transformou, entretanto, numa referência global de sucesso.

                  O filme está disponível (gratuitamente) na plataforma YouTube e procura mostrar como a ideia de incluir e somar acaba por estar base da construção do sucesso que, ano após ano, o festival foi criando. As imagens começam por nos levar ao universo dos pequenos concertos de bandas punk nos anos 80, afinal a génese da companhia que está na origem do festival. Na verdade a coisa correu menos bem para o responsável original da empresa (que mantinha em paralelo um negócio de marijuana) e a operação foi parar a novos donos. E é com eles que, nos anos 90, no meio de uma disputa que envolvia salas e vendas de bilhetes, a história os leva até Índio, uma pequena cidade no deserto, a leste de Los Angeles. “Mais longe do que hoje parece”, conta no filme um dos responsáveis por essa descoberta.

                  É em Índio que encontram o vasto relvado de um campo de pólo, enquadrado por uma paisagem tranquila mas ao mesmo tempo grandiosa que acolhe então um concerto dos Pearl Jam. Será ali que, anos depois, nascerá o festival – com as características dos festivais europeus – ao qual, contra todas as sugestões de amigos, resolvem chamar Coachella (afinal estavam no vale de Coachella, daí o nome). O anúncio da edição inaugural é feito poucos dias depois do tumultuoso encerramento de Woodstock 99… Mas contra as expectativas de quem imaginava pouco entusiasmo por festivais de música depois das cenas de distúrbios em Woodtsock, o primeiro Coachella lá ganhou forma e correu bem, mesmo sem dar lucro nessa edição. O modo de ser dos californianos, justifica o filme, estabeleceu o mood.

                  O problema maior do filme é o de parecer mais vezes querer sugerir a história destes 20 anos no quadro um mega-anúncio feliz (mesmo com dificuldades pelo meio, afinal uma ferramenta dramática que não faz mal nenhum usar) do que criar um relato mais realista da coisa. A linha central da narrativa parece sugerir o modo como a equipa foi imaginando o festival com novidades umas atrás das outras, seguindo as mudanças no mundo da música que iam acontecendo com os tempos que passavam… A história é contada como se as descobertas de novos géneros tivessem chegado ano após ano. E é de facto desconcertante o modo como a narrativa dá a impressão de que o festival partiu de uma visão indie da música e só abriu depois atenção à música eletrónica, aos DJ e ao hip hop. Porém, se virmos o cartaz do Coachela 99 com Beck, Morrrissey, A Perfect Circle, Perry Farrell ou Chemical Brothers no palco principal, notamos, ao olhar para os outros palcos e tendas, que estavam também ali os Spiritualized ou Modest Mouse e nomes como os Underworld, Art of Noise, Jurassic 5, Cornelius, Kevin Saunderson, Juan Atkins, Derrick Mau (wow, a santíssima trindade do tecno!), DJ Food, Amon Tobin ou Kid Koala… E vale a pena colocar estes nomes no contexto de 1999 para notar que estavam todos certos na hora certa no lugar certo. A visão dos programadores estava lá desde o início. Mas o filme parece não querer mostrar essa realidade… (que na verdade até seria mais favorável à caracterização de uma ideia que desde cedo chegou à visão certa do que o festival poderia ser)… Mas as histórias talvez sejam mais fáceis de acompanhar se as personagens entrarem em cena uma a uma, em vez de levarmos logo com uma manif de gente na primeira cena… Na verdade a questão tem a ver com uma mera questão de estabelecimento de uma narrativa. A que se quer contar. A montagem depois asseguraria um modo de vermos, um a um, os vários protagonistas.

                  À parte desta forma de o filme sugerir uma narrativa de aprendizagem gradual quando, na verdade, esse pensamento de inclusão e de soma de públicos já ali morava desde o início, o documentário nota, e aí com razão, como houve momentos que, a dada altura, fizeram com que estes outros espaços musicais (originalmente secundarizados face aos cabeças de cartaz) acabassem por ganhar protagonismo e visibilidade maior, chegando inclusivamente no palco principal. Há verdade factual quando se nota como os regressos e reuniões de bandas (Jane’s Addiction, Rage Against The Machine, Pixies, Bauhaus) revelam ser um gerador de entusiasmo. Madonna, em 2006, terá sido a primeira “estrela” a figurar no cartaz, defende o filme. O concerto dos Daft Punk representou um marco de mudança na visibilidade da música eletrónica. Uma atuação de Dr Dre e Snoop Dog, com 2Pac em holograma, fez história e, juntamente com concertos de Jay Z e Kanye West, confirmaram a viabilidade de um outro protagonismo para o hip hop. O mesmo acontecendo com Tiesto para outra relação com a música de dança. A atuação de Beyoncé – que de resto deu origem ao filme Homecoming – é naturalmente um marco tido em conta, assim como a abertura recente a novos artistas, de Billie Eilish ou Bad Bunny a vozes da K Pop… No meio desta celebração (justa) da inclusão e soma de públicos, o filme peca ao desenhar uma história que parece vincar a evolução de Coachella com episódios separados e escalonados de surgimento de novas vagas e novas gerações. Na verdade a história de Coachella sempre foi a da mistura e celebração da diversidade. E tanto nos géneros musicais como nas gerações de artistas chamados a palco. e o filme parece, aqui, ter um problema com os mais velhos… Se de Prince ainda temos direito a uns momentos ao som de Let’s Go Crazy já com os créditos finais a rolar, já de nomes como Iggy Pop, Kraftwerk (passaram lá duas vezes, uma delas no palco principal), Roger Waters, Leonard Cohen ou Paul McCartney há uns meros frames de dieta, que passam a correr… Depeche Mode (que foram cabaças de cartaz), Nick Cave e Duran Duran (todos no palco principal) ou Jean Michel Jarre nem sequer são referidos. Estas ausências de veteranos num filme que quer contar a história de um festival que é já maior de 18 parece reforçar a ideia da linguagem da publicidade em que o documentário tropeça… Se calhar estes nomes não faziam parte do grupo-alvo a encantar com as imagens e narrativas (literalmente) oferecidas.

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