Aos 87 anos, vítima de um tumor ósseo, Little Richard saiu de cena. As canções que juntou à génese do rock’n’roll e uma imagem ousada que chocava com o aspeto normativo da moral vigente cativaram descendências e deram-lhe um lugar na história da música. Texto: Nuno Galopim

A-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom! A expressão nasceu em frente ao lava loiças da cozinha de uma estação de camionagem. Richard Penniman tinha 21 anos e na verdade já havia passado por palcos e estradas, atuando em várias bandas e espetáculos de vaudeville. Mas acabara por desistir e, de regresso à cidade de Macon, na Georgia (EUA), onde tinha nascido em 1932, não encontrara sustento senão a lavar pratos. A música não o abandonava… Havia já mutações em curso desde que, anos antes, Ike Turner tinha apresentado o revolucionário Rocket 88 e, com essa canção, iniciado a história do rock’n’roll…Richard tinha escutado a canção mal saiu e desde cedo encontrara ali um chamamento… Mas nem todos (nem mesmo na sua família) aceitavam aquela música. Pela estrada caminhara com outras músicas, e chegara mesmo a ganhar um nome de palco, que lhe fora atribuído quando militava na Buster Brown’s Orchestra. Chamaram-lhe Little Richard… Era mais fácil de dizer do que Penniman… Litte Richard ficou. Mas em 1954 era como Richard Penniman que lavava pratos numa estação da Greyhound Lines… Fez mesmo assim uma gravação de algumas canções que compusera por aqueles dias… A-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom!… O som chegou aos ouvidos de um editor em Los Angeles. Levou tempo a responder. Mas por fim deu sinal de vida e chamou-o a gravar. Começou por gravações mais inócuas, que passaram despercebidas. Até que, suavizando os conteúdos sexualmente mais provocadores da letra original, Tutti Frutti chegou a disco. Foi em novembro de 1955. E nunca mais a história da música, nem a de Little Richard, seriam a mesma.
A Tutti Frutti sucederam-se canções como Long tal Sally, Sleepin’ and Slidin’, Rip It Up, The Girl can’t Help It ou Lucille. O rock’n’roll mobilizava atenções. Chuck Berry e Fats Domino conquistavam reconhecimento. Com pele branca, Elvis Presley ou Jerry Lee Lewis transformavam-se em casos de sucesso maior. Mas era Little Richard quem juntava à equação uma carga maior de ambiguidades, muitas delas lançadas pelas sugestões andróginas dos seus gestos e aspecto (que escapavam à norma, até mesmo das mais rebeldes emergentes estrelas do rock’n’roll)… Na verdade não houve sucessos retumbantes depois de uma pausa que ele mesmo decretou em 1958, ao que se seguiu um período de conversão à música religiosa. Mas quando Little Richard regressou à música secular, já na década de 60, já algumas das suas canções tinham ganho novas vidas em novas vozes. E entre os muitos que as cantaram e recriaram estava um quarteto nascido em Liverpool e que em breve iria fazer história…


O tempo levou Little Richard a ser uma das primeiras figuras a alimentar um circuito de nostalgia para as gerações que fizeram nascer o rock’n’roll e mudaram a face da cultura popular. E mesmo tendo atuado continuamente (um muito jovem Jimi Hendrix fez parte da sua banda) e lançado discos com grande regularidade até finais dos anos 70 (há ainda álbuns de estúdio nos anos 80 e 90), Little Richard foi sempre mais uma referência profundamente influente do que uma força musicalmente capaz de juntar novos episódios significativos à sua história. Na verdade não lhe precisávamos de pedir mais nada. A contribuição que juntou na forma de grandes canções à história dos primeiros tempos do rock’n’roll e a força de uma iconografia que dele fez um ícone imortal (Prince não seria certamente o mesmo sem os desafios e ousadias de Little Richard) insvcreveram-no há muito num patamar de relevo maior na história da música. Deixou-nos, vítima de um cancro, aos 87 anos.