O “caso” do single que possivelmente nunca existiu

Não há colecionador de discos atento à obra de Fernando Tordo que não partilhe algo em comum: não tem nem viu nunca o single “Escrevo às Cidades”. O GiRA DiSCOS pôs-se em campo… E junta aqui o que conseguiu apurar sobre este… mistério. Texto: Nuno Galopim

Há um mistério que deixa, há já vários anos, colecionadores e admiradores de Fernando Tordo com uma dúvida: então ninguém tem o disco? O disco em questão é um eventual single com o tema Escrevo às Cidades (a canção com a Fernando Tordo qual se apresentou no VII Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, em 1970) e que, no lado B, deveria incluir A Noite e a Ira.

O disco teve de facto uma capa fabricada. E junto da Valentim de Carvalho (VC) confirmei que o disco teve um processo aberto, mas nele não consta nunca qualquer indicação nem de stocks nem de vendas, ao contrário do que é norma em todos os lançamentos. Depois de ter falado tanto com Fernando Tordo como com Jaime Queimado juntamos outro dado importante: nenhum deles teve nunca este disco nas mãos. Bizarro no mínimo, não?

Uma vez que era prática corrente, a gravação em estúdio da canção, anterior à própria realização do festival, esta poderá ter ocorrido. Mas a gravação, a existir, não foi ainda localizada no arquivo da editora (e vale a pena sublinhar que o arquivo da VC tem vindo a ser alvo de um trabalho notável de inventariação e conservação, permitindo descobertas notáveis, como temos visto com vários lançamentos de Amália Rodrigues). Se a gravação eventualmente existir e reaparecer, certamente teremos depois boas notícias.

O mais certo é que, apesar de ter sido preparada a edição deste single, a sua prensagem em vinil nunca tenha vindo a ser concretizada (é que nem um test pressing é conhecido!). Ou seja, o disco possivelmente não existiu nunca nas lojas nem está nas mãos de colecionadores porque o mais certo é que não tenha sido prensado.

Na capa, que a editora tem em arquivo, pode ver-se o número de série PN 113, do catálogo da Decca, que era então uma etiqueta da Valentim de Carvalho. Na contracapa o nome de um dos autores da canção, Jaime Queimado, que é co-autor da música juntamente com Fernando Tordo, surge referido como José António Queimado. A letra é de Victor Manuel Oliveira Jorge. A contracapa refere ainda como “outro êxito deste artista” o single com a versão de The Windmills Of Your Mind, que nos ajuda a arrumar cronologicamente a data prevista para a sua edição. Na capa o nome do concurso da RTP é apresentado como VII Grande Prémio da Canção – 1970 (sem o “TV”).

O single surgiu já referido em alguma bibliografia, mas João Carlos Callixto, autor que lembra a memória desta canção (e procura apurar a possibilidade de existência deste single), reconhece não ter certeza sobre de se facto ele alguma vez existiu. No livro Portugal 12 pts – Festival da Canção, refere que este “seria” o quarto e último disco de Fernando na Valentim de Carvalho”. O tempo verbal é o certo e a informação está correta (porque deixa no ar a eventualidade e não a certeza). O próprio confessou já no GiRA DiSCOS que este é um dos singles que há mais tempo procura referindo-o como um disco “que aparentemente ninguém tem”, o que o “deixa bem intrigado”. Já Carlos Portelo, outro colecionador, referiu aqui, sobre este single, que “é quase impossível encontrá-lo”.

Disseram-me que ouviram dizer que existe quem teve em tempos este single… Mas a verdade é que nem todas as memórias são nítidas. O “diz que” e o que se ouve dizer não tem valor para certezas, apenas deixa a dúvida subsistir… Mas o facto é que não conheço ninguém que o tenha sequer visto uma vez que seja.

Há um dado importante a juntar a esta argumentação. Por muitos erros (sobretudo nas datas) que encontremos na plataforma Discogs, o single Escrevo às Cidades não consta na página referente a Fernando Tordo. Porque é este dado aqui mais relevante do que uma discografia publicada numa Wikipedia ou qualquer outro site? Porque quem constrói a base de dados do Discogs são sobretudo vendedores e colecionadores. Se o disco alguma vez tivesse passado pelas mãos de qualquer um, ou seja, se o tivessem para vender ou para anotar na respetiva coleção, ali poderia ter surgido… Mas não.

Não podemos afirmar categoricamente: não existe. Mas os factos apontam nesse sentido.

Uma versão, partilhada com Paulo de Carvalho, existe no EP Festival Camaradagem, editado ainda em 1970. A compilação de 2008 Os Primeiros Êxitos de Fernando Tordo e Carlos Mendes, que junta gravações de ambos na etapa que viveram a solo na VC, não inclui Escrevo às Cidades. Da passagem de Fernando Tordo pelo festival está ali apenas Cantiga, de 1969. A canção não surgiu nunca em qualquer antologia de Fernando Tordo. Existe, todavia, no arquivo da RTP, o registo da sua apresentação no VII Grande Prémio TV da Canção Portuguesa. E, convenhamos, é uma bela canção.

O ano era diferente do habitual para o concurso que, desde 1964, vinha a escolher a canção representante de Portugal no Festival da Eurovisão. Acontece que, como medida de protesto pelo sistema de votação (que ditara no ano anterior quatro vitórias ex-aequo), à qual aderiam também os países nórdicos, a RTP não se fez representar em 1970 no concurso internacional. Daí o calendário do Festival da Canção (ainda sem esse nome) ter avançado um pouco face ao habitual, tendo-se realizado a 22 de maio no Cinema Monumental, em Lisboa, quase dois meses depois do Festival da Eurovisão, realizado em Amesterdão (Holanda), tendo dado então à Irlanda a sua primeira vitória, com All Kinds of Everything.

Com Escrevo às Cidades, Fernando Tordo foi o primeiro a apresentar-se no VII Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, que sagraria como vencedor Sérgio Borges com Onde Vais Rio Que eu Canto, com letra de Joaquim Pedro Gonçalves e música de Nóbrega e Sousa. Esta edição do festival apresentou ainda temas como a Canção de Madrugar (letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Nuno Nazareth Fernandes, ou seja, a mesma dupla da Desfolhada que vencera no ano anterior), na voz de Hugo Maia de Loureiro. Paulo de Carvalho apresentou-se com Corre Nina (letra de Portugal Sobral e música de Pedro Osório). E com a mesma equipa criativa da canção de Fernando Tordo surgia ainda ali Então Dizia-te, cantada por Duarte Mendes. Escrevo às Cidade ficou em 10º (último) lugar, com apenas três pontos.

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