Houve vários projetos para ‘biopics’ sobre a figura da principal alma criativa dos Beach Boys. Com realização de Bill Pohlad, o filme “Love & Mercy” (2014) divide olhares entre duas etapas na vida do músico que, aqui, é recriado por John Cusack e Paul Dano. Texto: Nuno Galopim

Entre biopics, documentários (muitos documentários) e a própria presença de canções em bandas sonoras, o cinema tem mostrado nos últimos anos enorme atenção por vários territórios da música popular. O filão dos biopics, em particular, tem revelado regularmente novas propostas, desde os alinhavados de memórias arrumadas (e são muitos os exemplos neste sentido, tendo revisitado assim figuras como as de Ray Charles ou Johnny Cash) às construções mais elaboradas, com cunho autoral e rasgo criativo capaz de ir mais longe do que uma mera entrada de Wikipedia, como vimos, por exemplo, na fragmentação da personalidade e biografia de Bob Dylan no desafiante I’m Not There de Todd Haynes ou até a recente investida em memórias de Elton John apresentadas em Rocketman. Sabendo manter intacta uma noção sobre o factual, sem dispensar a busca de um ponto de vista autoral e um saber numa construção da complexidade que habita as personagens, podemos lembrar um magnífico biopic sobre Brian Wilson (a alma criativa dos Beach Boys) entre a lista dos momentos em que o cinema soube olhar para a música (e quem a faz).
Basta escutar a diversidade na obra dos Beach Boys (que existe, se bem que as receitas de nostalgia mais habituais nem sempre o observem) para notar como desde cedo sempre houve mais do que surf e sol nas canções de Brian Wilson. De resto, logo ao terceiro álbum, o mesmo em que se revelavam novos hinos de praia, carros, pranchas, raparigas e mar como Surfer Girl ou Little Deuce Coupe, era em In My Room que podíamos escutar a outra face de uma alma de que nem mesmo os que mais perto dela circulavam observavam com a devida atenção. Esse lado mais solitário e assombrado haveria de emergir um pouco mais tarde e ter consequências criativas, mas também comportamentais, levando os Beach Boys quer à construção da sua obra-prima em 1966 (em Pet Sounds), como a um mergulho no abismo que afastaria durante largos anos a figura de Brian Wilson do lugar que entretanto conquistara no panorama da música pop.
É precisamente esse arco, entre o ataque de pânico que gera a vontade em deixar a rotina exaustiva da estrada e o momento em que o grupo e a editora o afastam para concluir, de forma medíocre e inevitavelmente inconsequente, a visão da sinfonia de bolso para Deus que Brian imaginara para o álbum Smile (que na verdade só completaria a solo muitos anos depois) que se desenha um dos planos narrativos do filme. O outro, que evolui em paralelo, transporta-nos aos anos 80, a um tempo em que um músico mergulhado na medicação excessiva e vigilância obsessiva de um terapeuta conhece uma vendedora de carros que lhe abriu horizontes de humanidade e esperança que pareciam ter sido esvaídos do seu corpo.



Usando como título Love & Mercy, na verdade uma canção do álbum de estreia a solo criado sob a “supervisão” do terapeuta Eugene Landy, o filme chega até nós com o título A Força de Um Génio, escolha infeliz que traduz o registo de banalidade na forma mais simplista de retratar o “artista enquanto ser raro e bizarro” que pode até habitar muitos outros biopics mas não este. E basta ler as legendas, quando se escuta a canção-tema, para reparar que o título estava lá: “amor e compaixão”. Enfim… Vale a pena notar que, no processo de produção, o realizador chegou a pensar em chamar-lhe Heroes and Villains, o título de uma das canções de Smile. Mas, no fim, como em tantas outras opções na construção do filme, escolheu bem.
A ideia de fazer um biopic sobre Brian Wilson não é recente e havia já movimentações em curso em finais dos anos 80 para o concretizar. Convenhamos que neste caso (como em tantos) a espera compensou. O projeto ganhou forma sob a liderança do produtor Bill Pohland – que trabalhou em filmes como Brokeback Mountain, 12 Anos Escravo ou A Árvore da Vida –, que, em tempos, havia feito uma única experiência na realização. Visando focar o retrato de Brian Wilson em períodos marcantes (evitando o era uma vez feito de muitos pequenos acontecimentos), tinha imaginado uma construção narrativa que abarcasse três períodos: um nos anos 60, um nos 70 e um terceiro nos 80. Era o ator Philip Seymour Hoffman quem estava destinado a vestir a pele do músico na etapa nos anos 70 que corresponde ao período em que mal saía da cama. A sua morte deixou em aberto um lugar que assim acabou (inteligentemente) excluído da construção do filme, deixando o biopic caminhar entre as memórias dos sessentas (com Paul Dano como um muito convincente Brian Wilson jovem) e os oitentas (aí com John Cusack no seu lugar). O “verdadeiro” Brian acompanhou a criação do filme, sobretudo no assegurar do rigor dos factos no argumento, tendo assistido a uma leitura e sugerido pequenas, mas certamente importantes, observações.
O diálogo que se estabelece entre os factos e vivências que recordamos na etapa vivida nos anos 60 e as sequelas que notamos no corpo (sobretudo expressões faciais e trejeitos na mão) e comportamentos nos oitentas ajudam a talhar um retrato de Brian Wilson que vai para lá de uma soma de factos e notas biográficas. A figura temida de um pai que de tanto lhe bater quase o fez perder a audição num ouvido e que via a música como uma receita para o sucesso representa uma das assombrações que atormentam o jovem Brian. Porém, e tal como o ataque de pânico e exaustão da vida na estrada, essas experiências tiveram consequências na sua música: obrigaram-no a querer ser muito bom no que fazia. Ou melhor ainda.
Somando estas vivências, e acompanhando com um cuidado que deliciará qualquer melómano a criação quer do álbum Pet Sounds (1966) como do single Good Vibrations (1967) que se lhe seguiu, não esquecendo as sessões de Smile (1967), Bill Pohland constrói um retrato envolvente e de carne, osso e mente de uma figura que é claramente mais do que apenas um “génio”. Há uma preocupação maior na busca de verosimilhança nas imagens e sons. Não só o casting é brilhante – é preciso olhar atentamente para acreditar que não são os Beach Boys de então, devolvidos ao presente por uma máquina do tempo – como a recriação de sessões de fotografia célebres – das quais nasceram as capas de Surfin’ Safari ou Surfer Girl –, de momentos de palco ou participações televisivas e até mesmo do filme promocional que acompanhou Sloop John B garantem uma base de verdade visual e factual sobre a qual o argumento depois talhou figuras que, mesmo reais, ganham aqui a tessitura de grandes personagens. E aqui há que juntar um trabalho de interpretação que deve acrescentar aos feitos de Dano e de Cusack um aterrador Dr. Landy criado por Paul Giamatti.
A música é depois outro dos valores maiores de um filme no qual não contamos apenas com memórias dos Beach Boys – e vale a pena estar atentos às sessões de estúdio –, mas que junta ainda uma banda sonora original de Atticus Ross, uma referência no panorama atual da composição para o grande ecrã.
Grande filme! Chorei como uma criança…
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