Dez discos que definiram o meu gosto – Daniel Barradas

Cada disco pode contar várias histórias. E quem quiser mais do que ficar olhar para as capas pode agora ler aqui… Dez discos… e as respetivas histórias. E assim nasce o gosto de cada um. E hoje quem partilha aqui os seus dez discos e as respetivas memórias é o Daniel Barradas.

É obviamente muito difícil para um ávido consumidor de música como eu escolher apenas 10 álbuns que influenciaram o meu gosto, mas quando comecei a pensar nalguns discos pensei também nas circunstâncias em que me chegaram aos ouvidos e aonde me levaram nas estradas da música. O que imediatamente se tornou claro foi que os discos que tiveram maior impacto vieram associados ao gosto de outras pessoas. É certo que há coisas que primeiro se estranham e depois entranham, mas até se entranharem há que suportar a estranheza e a verdade é que, a maior parte das vezes, só damos a devida atenção a certas músicas por reverencia às pessoas que já as assimilaram e cujo gosto respeitamos. Resolvi então dar um pouco mais de contexto a 10 discos importantes para mim que chegaram associados a 10 pessoas (ou entidades) e me levaram para novos sítios. Texto: Daniel Barradas

1 – O meu pai

“Your 101 favorite melodies” – colectânea do Reader’s Digest (anos 70/80)

Eu nasci em 1973 e até aos meus seis anos morámos numa pequena vila no Alentejo. Os primeiros discos que ouvi foram os que já existiam lá por casa. Tínhamos discos com canções infantis que eram oferecidos a mim ou à minha irmã (por exemplo, álbuns do José Barata Moura ou singles com as canções da Heidi e da Pipi das Meias Altas), mas os que começaram a formar o meu gosto foram os que o meu pai comprava. Não me lembro de ele alguma vez ter entrado numa loja de discos para comprar algo específico mas ele costumava comprar por correio colecções da Reader’s Digest, principalmente música clássica ou “easy listening” dos anos 60/70 como o Herb Alpert e Burt Bacharach. A colectânea “Your 101 favorite melodies” existia lá por casa desde que me lembro. Tinha os essenciais da música barroca e clássica, de Vivaldi e Bach a Ravel e Dvorak. Deu-me as minhas primeiras lições informais de história da música e também de história da arte porque cada disco tinha uma pintura clássica na capa. Foi aqui que vi pela primeira vez imagens de dois dos meus pintores favoritos: Vermeer e Turner. Quando eu tinha seis anos mudámo-nos para Faro e pouco depois os meus pais puseram-me no conservatório a ter aulas de solfejo e piano e também me costumavam levar a concertos do Festival de Música do Algarve. É raro eu comprar música clássica em disco, mas vou frequentemente a concertos de orquestra e a óperas. O meu gosto por este tipo de música vem sem dúvida desta colectânea que tinha todos os “grandes êxitos” que uma pessoa deve conhecer. Quando jogava “Manic Miner” no Spectrum 48k que me ofereceram aos 12 anos, eu sabia que a banda sonora era o “In the hall of the mountain king” do Edvard Grieg. 

2 – A minha irmã

Roxy Music “Avalon” (1982)

A minha irmã é seis anos mais velha do que eu. Quando os Roxy Music tocaram no estádio de Faro em 1982 ela era uma adolescente e eu uma criança. Ela foi vê-los e eu claro que não. Mas ela comprou o álbum “Avalon” e esse foi um dos discos que me iniciou na música pop. Tinha a mística de ser música de “adultos” (ou seja, de gente que ia a concertos onde se fumava) e era um dos meus disco preferidos lá de casa, tanto que lho roubei e tem-me seguido para todo o lado. Agora está comigo aqui em Oslo, com a capa muito velhinha mas curiosamente com o vinil ainda a soar esplêndido, tanto que nunca senti necessidade de ter nova cópia. O som polido e glamoroso deste álbum, que desliza pelos ouvidos como manteiga e desenha largas paisagens sonoras, sempre me assombrou e tornou-se matriz para eu medir a qualidade da produção de muita coisa.

3 – Eu e o Blitz

Rádio Macau – “Spleen” (1986)

A minha família não comprava muitos discos mas, nos anos 80, pelo natal, comprava-se a colectânea Jackpot. A de 1985 incluía “A vida num só dia” dos Rádio Macau que foi uma canção que me intrigou porque era das poucas portuguesas e diferente de todas as outras. Não gostava dela ao início mas acabei a ouvi-la obsessivamente e tornei-me fã absoluto dos Rádio Macau. (E também um fã muito solitário porque não conhecia mais ninguém que gostasse deles…) Eu não tinha dinheiro próprio para comprar discos (tinha 13 anos) mas tinha um rádio com gravador e por isso comecei a ligar para os programas de discos pedidos na rádio local. Pedia sempre Rádio Macau e tentava gravar. Foi assim que descobri que tinham um álbum chamado “Spleen” que tinha uma das canções mais lindas que jamais tinha ouvido: “Há dias assim” começa orquestral com uns violinos como se não fosse pop, mas às tantas entra aquele baixo musculado (digno dos Roxy Music) e depois começa a Xana a cantar, totalmente enfadada com o mundo. Nas tardes que eu passava sozinho em casa era a banda sonora perfeita!Assim que arranjei dinheiro para gastar num disco fui a uma loja pedir o “Spleen” dos Rádio Macau mas não o tinham. Para não voltar de mãos a abanar comprei o “Libertação” dos Delfins. Durante anos, cada vez que entrava numa loja de discos pedia o “Spleen” mas nunca o encontrei à venda… (Acabei por o comprar apenas em 2012!) Mais tarde, ainda 1987, saiu o “Elevador da Glória” que era uma coisa completamente diferente do “Spleen” mas eu estava decidido a ser fã dos Rádio Macau. Comprei esse álbum e convenci a minha irmã e o namorado a levarem-me à discoteca Trigonometria para os ver. Foi o meu primeiro concerto pop/rock e a minha primeira entrada numa discoteca! Estava tão obcecado com os Rádio Macau que considerei seriamente entrar para a associação de estudantes para poder organizar um concerto com eles no pátio do liceu e finalmente converter as massas incultas. A idéia não se concretizou mas ficou uma semente que deu frutos umas décadas depois…Para poder ser um fã mais activo (diga-se ter fotos da banda para colar nos cadernos) passei a pedir ao meu pai para me comprar o jornal Blitz. Como não escreviam só sobre os Rádio Macau (infelizmente) decidi ser fã em geral de música portuguesa e foi graças ao Blitz que comecei a ouvir Mler Ife Dada, Anamar, Pop dell’Arte e outras coisas “obscuras” que normalmente não chegariam a um puto de Faro que só ouvia a RFM e o top de discos na televisão. Foram os Rádio Macau e o Blitz que me criaram o gosto pela música feita em Portugal e foi com o maior orgulho que entre 2015 e 2019, quando finalmente e por mero acaso tive a oportunidade de organizar concertos, que trouxe à Noruega o David Fonseca, o Sérgio Godinho, o Filipe Raposo com a Rita Maria, o Camané e o Conan Osíris. Mas se os Rádio Macau ainda fossem vivos teriam sido eles os primeiros a vir a Oslo em vez do David Fonseca (sorry (not sorry), David!).

4 e 5 – O meu primo

Madredeus – “Os dias da Madredeus” (1987)

Dead Can Dance – “Spleen and Ideal” (1985)

Em 1987 fomos passar o natal com a família do meu primo Manuel Fernando. Ele era bastante mais velho, vivia em Lisboa e tinha visto o primeiro concerto dos Madredeus na primeira parte dos Sétima Legião na Aula Magna. Ele tinha oferecido o álbum “Os dias da Madredeus”, que tinha acabado de sair, a alguém da família dele e eu passei o dia de Natal na salinha onde eles tinham o gira-discos, sozinho, a ouvi-lo de trás para a frente. Era a coisa mais triste e melancólica e linda do mundo e fui a correr comprá-lo para mim. O meu primo tinha um programa chamado “À Sombra” na Rádio Universitária Tejo (uma rádio pirata que entre 1986 e 1988 emitia a partir do edifício da associação de estudantes do Instituto Superior Técnico). Acho que foi também neste natal que ele ofereceu à minha irmã uma cassete de uma das emissões do programa dele. Eu tomei posse dessa cassete e passei anos a tentar descobrir os nomes das coisas maravilhosas que tinha e que nunca tinha ouvido em mais lado nenhum: Era Propaganda, Shriekback, Teardrop Explodes, Sheila Chandra, etc… Na primavera seguinte voltei a casa dos pais deste meu primo. Ele não estava, mas estavam lá os discos dele. Peguei no “Spleen and Ideal” dos Dead can Dance por causa do “Spleen” dos Rádio Macau. Quando o pus a tocar, foi a revelação absoluta. Era a música que eu sempre queria ter ouvido e que não sabia que existia. Fui chamar o meu pai e obriguei-o a levar-me a uma loja e a comprar cassetes. Copiei quatro álbuns dos Dead Can Dance, dois dos Cocteau Twins e o “Helleborine” dos Shelleyan Orphan. Descobri a maior parte da música de que ainda hoje gosto graças ao Manuel Fernando. Para além dos Madredeus ele levou-me à minha paixão pela Né Ladeiras e pela Banda do Casaco. E nos artistas internacionais, para além de me revelar o catálogo da 4AD, mostrou-me as influências dos Rádio Macau vindas dos Echo and the Bunnyman, Cure e U2. Também foi na colecção de discos dele que vi pela primeira vez o nome David Sylvian e quando fui investigar o que era, caí também por esse buraco e nunca de lá saí. Obrigado ao Manuel Fernando por me ter alienado ainda mais dos meus colegas da escola secundária.  

6 – O amigo do liceu

New Order – “Technique” (1989)

Na escola havia alguma identificação com tribos musicais. Eu era o único com os cadernos cobertos de fotos dos Rádio Macau e da Anamar. O Rui António era o único uma poupa pintada de louro (que era uma coisa muito mais cool) e ouvia discos que se encomendavam por correio de catálogos obscuros, fotocopiados e semi-punk. Gravou-me umas cassetes com os New Order e foi outra revelação. O álbum “Technique”, com aquela mistura de canções tristes mas altamente dançáveis foi o que mais me marcou. Lembro-me de estar sempre a rebobinar a cassete para ouvir “Vanishing Point” em loop. Ainda hoje quando ouço “Grow up children, don’t you suffer at the hands of one another…” cai-me a adolescência toda em cima outra vez. Depois o Rui António emprestou-me o LP do “Music for the Masses” dos Depeche Mode e num concurso do Blitz ganhei o “Behaviour” dos Pet Shop Boys. Estava rendido.O Rui Paulo também me convidou para ser teclista numa banda em que ele era baterista. Eu continuava a estudar piano mas para poder ser cool como o Rui comprei um sintetizador e converti-me à electrónica (dentro do possível). A banda chamava-se “Sky parte-se” (grande trocadilho, preparado para os mercados nacional e internacional). Ensaiávamos na Fuzeta e o nosso nada-grande sucesso “Almas Mortas” era uma versão de uma canção deprimente dos Joy Division. Entre outros eventos de prestígio, tocámos na feira do queijo de Aljustrel e abrimos um concerto da Nucha numa discoteca de Olhão.O Rui António já não tem poupa mas ainda é muito cool. Entre outras coisas, é realizador de cinema e recomendo toda a gente a ver o filme “Em casa também não fazemos a cama” quando estrear.

7 – O professor de história da música

Gothic voices – “The Castle of Fair Welcome”

Passei muitos anos no conservatório a ouvir e a tocar música que não me dizia grande coisa. Mas quando em 1991 comecei a ter aulas de História da Música percebi que o que eu gostava mesmo era de música medieval e renascentista. Quando começámos a estudar música medieval e eu mostrei ao professor Francisco Rosado o álbum “Aion” dos Dead Can Dance, ele disse-me: está bem, mas ouve lá isto. “Isto” era o álbum “The Castle of Fair Welcome” do grupo Gothic Voices. De repente, percebi de onde vinha tudo o que gosto, as melodias, as harmonias, a suave melancolia. Nas composições de Guillaume Duffay e Robert Morton, estava lá tudo. Percebi que é preciso saber de onde as coisas vêm. Que as raízes são importantes e muitas vezes bem mais potentes do que o que nasce delas.Quando me mudei de Faro para Lisboa para estudar na universidade não pude levar o piano. Mudei de instrumento e resolvi começar a tocar flauta transversal. Foi um erro porque eu era péssimo. Se calhar eu devia era ter tentado a flauta de bisel como o professor Rosado tocava para poder finalmente entrar num repertório que verdadeiramente me interessava… 

8 – A imprensa musical

Najma – “Atish” (1990)

Graças ao Blitz e a outras publicações comecei a descobrir muitas coisas que, de outro modo, nunca me teriam chegado aos ouvidos. Acontecia comprar um disco sem o ter ouvido só porque confiava numa crítica. Não me lembro já onde foi que li uma crítica ao álbum “Atish” de Najma, mas dizia maravilhas. Coincidiu encontrá-lo à minha frente no dia seguinte (na discoteca Tubitek no Porto) e comprei-o imediatamente sem hesitar. Nunca tinha ouvido música indiana na vida mas adorei. Ainda hoje sei as letras das canções todas de cor sem perceber uma palavra. Foi o disco que me fez perceber que não faz mal atirarmo-nos de cabeça a músicas que não conhecemos. Quando a world music explodiu nos anos 90, eu estava mais que pronto. Foi outra vez a confirmação de que as raízes são importantes. Quando ouvi o álbum “The Sensual World” da Kate Bush não fazia ideia do que eram as vozes búlgaras. Perceber como e porque é que ela usava esses coros passou a dar muito mais sentido e contexto a essa música. Desses anos ficaram também a Sainkho, a Natacha Atlas, O Nusrat Fateh Ali Khan…Hoje em dia faço o design de cartazes para os concertos na sala Cosmopolite em Oslo que traz muitos dos artistas do circuito da World Music a Oslo. Não o faço para ganhar dinheiro, é para poupar, porque me põem na lista de convidados dos concertos.

9 – O senhor da rádio

Red House Painters – “Shock me” (1994)

Quando fui estudar para Lisboa no início dos anos 90 ouvia muito a XFM porque era a estação que tocava as coisas mais próximas do meu gosto nessa altura. Ouvia especialmente o programa de um fulano chamado Nuno Galopim, porque às quartas-feiras tinha concursos para ganhar bilhetes para as estreias dos filmes no cinema King. O Nuno era um tipo porreiro porque quando eu ligava sem saber a resposta à pergunta do concurso ele dizia qual era e eu podia ligar outra vez e acertar. Dava-se também o caso de ele passar música decente no programa dele, mas havia uma banda que ele teimava em passar que me irritava solenemente. Os Red House Painters eram uma seca e ele insistia em tocá-los. Até que um dia, numa loja de discos, encontro uma capa linda: um piano velho em tons de sépia. Sem nome de banda, só a foto. Quando viro a capa, vejo que afinal é um disco dos malfadados Red House Painters. Mas como era uma edição da 4AD e o tal do Galopim achava que eram bons, comprei-o. Era um EP e por isso não era um grande investimento, mas com quatro cançõezinhas apenas descobri que afinal eu amava os Red House Painters. A partir daí foi a discografia toda deles, a descoberta da “Americana”, Bonnie “prince” Billy, Smog e essas coisas… Devo muitas outras descobertas musicais a este senhor da rádio, o programa dele contribuiu para anos muito formativos do meu gosto musical, mas agradeço-lhe especialmente por me chocar com os Red House Painters.

10 – O amigo em Berlim

Mary Ocher – “The West Against the People” (2017)

Encontrar parceiros de diálogo, amigos que me mostram coisas que não passam na minha esfera de influencias naturais, tem sido essencial para expandir o meu gosto musical. Conheci o Timo C. Engel em Oslo em 2010 quando passámos um dia inteiro a falar de música e a mostrar coisas um ao outro (ele agora é fã do primeiro álbum dos Sétima Legião). O Timo é DJ em Berlim e também tem um projecto musical chamado Bleedingblackwood para o qual fiz o design da capa do primeiro álbum. Ao longo destes anos de amizade ele tem desafiado o meu gosto com muita coisa mas escolho como exemplo a Mary Ocher que é vizinha dele em Berlim e que eu já tive o prazer de ver duas vezes em concerto. “The West Against the People” é um daqueles álbums em que é preciso mergulhar sem preconceitos ou expectativas para o entender e aprender a gostar. Altamente dramático e performativo, ao mesmo tempo que poético e politicamente interventivo, não é coisa de digestão fácil e imediata. Mas é lindo e inventivo e não tenta encaixar em molde nenhum. Depois de tantos anos a ouvir tanta música, adoro que me puxem o tapete debaixo dos pés com coisas a que não se consegue pôr uma etiqueta e que abrem uma estrada que não se sabe para onde vai.

2 pensamentos

  1. Apenas uma nota: o Atish, da Najma, foi objeto, pela verve do Ricardo Saló, de uma recensão no Expresso. Não me recordo de outro texto sobre o disco, por isso talvez este semanário seja a fonte em causa. Tenho o disco e o tempo não o maltratou, como acontece com muitos.

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