Cada disco pode contar várias histórias. E quem quiser mais do que ficar olhar para as capas pode agora ler aqui… Dez discos… e as respetivas histórias. E assim nasce o gosto de cada um. E hoje quem partilha aqui os seus dez discos e as respetivas memórias é o Miguel Marujo.

Os dez álbuns que influenciaram o meu gosto musical não serão os que gosto mais de cada um dos seus autores — embora haja um ou outro que coincida. Mas cada um deles serviu para desenhar um mapa que me levou por novos caminhos e mais histórias cheias de música. Peço desculpa pelo abuso de referências e adjetivos.
Virginia Astley “Hope In a Darkened Heart“
(1986)
Não me recordo o que me fez comprar este que foi o primeiro disco que comprei com dinheiro amealhado por mim. Talvez uma crítica lida num jornal, talvez a breve audição na rádio ou mesmo na loja de Some Small Hope, a canção que Virginia Astley canta com David Sylvian, envoltos em teclas que nos soam a sinos.
Sei que ouvi Hope In a Darkened Heart intensamente — e o vinil revela hoje as marcas desses tempos de escuta extasiada — e sei que este álbum me levaria à descoberta da escassa discografia da britânica, sobretudo dessa obra-prima que é From Gardens Where We Feel Secure.
O dueto com Sylvian transportou-me para outra descoberta absolutamente fundamental que é o universo do antigo frontman dos Japan e que influenciaria em absoluto o meu gosto musical. Por isso, o superlativo Secrets of the Beehive é um dos discos da minha vida, sempre ouvido com renovado prazer, mas também por isso me deixo sempre fascinar pelas sonoridades e texturas mais ou menos experimentais de quem arrisca uma Pop Song que é uma “antipopsong” ou nos conduz pelas Forbidden Colors com Ryuichi Sakamoto — e o japonês, que esteve na produção do disco de Virginia Astley, é também ele uma descoberta desta época. Santíssima trindade!
Genesis “The Lamb Lies Down On Broadway“
(1974)
Quem tem irmãos mais velhos, com diferenças significativas e em idades que definem o gosto, é-se necessariamente influenciado por esse seu gosto. É o caso. Ouvi até à exaustão os Genesis, sem grande distinção entre as fações Peter Gabriel vs Phil Collins, mas foi este duplo LP (que marcou o fim de Gabriel no grupo britânico) que sempre mais e melhor me ajudou a definir o gosto por um certo rock operático, progressivo e conceptual.
Nos anos 80 e 90, os Genesis foram muito maltratados, mas hoje, apesar dos amores e ódios que ainda provocam, têm um lugar reconhecido na música — e este é o seu melhor cartão-de-visita. E por causa desta influência fraternal, cresci a ouvir tantos e tantos outros progrock, dos Pink Floyd aos Jethro Tull, dos Tantra a José Cid, sim, ele!, em 10 000 Anos Depois Entre Vénus e Marte.
Madredeus “Os Dias da MadreDeus“
(1987)
Quando o Blitz ainda era no masculino, feito jornal semanário em papel, um texto de Miguel Esteves Cardoso (e dizíamos MEC e já estava apresentado), provavelmente lido algures em 1987, introduziu-me a um mundo mágico. Falava das gravações e ensaios de um grupo de músicos numa antiga igreja em Xabregas, em Lisboa, acompanhados de uma voz que fazia sonhar (não sei se eram estes os termos, mas foi isto que me ficou gravado na memória) – e apaixonei-me pelo mundo que as palavras do MEC me traziam.
Para alguém que vivia numa cidade pequena, com duas discotecas (quando as lojas de discos se chamavam assim), e um acesso curto na carteira para discos e imprensa, a prenda daquele Natal foi um sonho: o LP duplo de Os Dias da MadreDeus (e o grupo ainda não se chamava só Madredeus, e eu insistia naquele nome longo e bonito durante muito tempo) confirmou todas as minhas expectativas, da voz que nos fazia sonhar, de instrumentos impregnados de beleza, de músicas tão ingénuas quanto fantásticas.
Meses depois, confirmaria tudo isto num concerto único, daqueles que nos marcam para a vida, no Teatro Aveirense, ainda a meia casa e onde esgotaram as canções ensaiadas nos encores para cantarem O Brasil a pedido da plateia, numa versão tocada pela graça (assim me ficou).
A viagem por este disco enquadrou-se nas várias descobertas que tive então na música portuguesa, incluindo a Sétima Legião, de Mar D’Outubro, que me levou mais para trás ao genial A Um Deus Desconhecido, e que porventura também podiam estar no lugar deste Os Dias da MadreDeus – não fosse um certo texto de jornal me ter transportado para aquela antiga igreja às voltas com uma coisa velha.
Nick Cave and The Bad Seeds “The Good Son“
(1990)
Foi num filme que o ouvi, quando o rapaz no palco se entregava a The Carny, eu ainda não conhecia esta canção, e ele pensava para si que só “mais uma canção e acabou, mas não lhes vou falar de uma rapariga, não lhes vou falar”, mas ao microfone disse o contrário: “Vou falar-vos de uma rapariga” – e a banda começava a tocar. Era Nick Cave and The Bad Seeds num palco em Berlim, no filme Der Himmel über Berlin/As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, a tocarem The Carny e From Her To Eternity. E é por causa desta cena que fui à procura deste australiano, que há muito vive no Reino Unido.
Descobri Your Funeral… My Trial (1986), fui até From Her To Eternity (o primeiro álbum, de 1984), mas foi com The Good Son (1990) que tudo mais fez sentido: é neste disco que se inicia uma inflexão, depois da visceralidade dos cinco primeiros álbuns, para um lirismo hipnotizante que o foi acompanhando, com mais ou menos intensidade, com mais ou menos arroubos carnais.
Podia nomear ainda Murder Ballads (1996) ou The Boatman’s Call (1997), outros marcos na construção do meu gosto pessoal, até às três últimas obras-primas (Push The Sky Away, Skeleton Tree e Ghosteen), mas foi com The Good Son que percebi que Nick Cave era verdadeiramente um filho pródigo.
José Mário Branco “FMI“
(1982)
Este disco está aqui por culpa de um grande amigo, o Olímpio. Os amigos também têm sempre culpa no que acabamos por ouvir vida fora. E este meu amigo em particular tratou de ensinar-me a olhar as coisas de modo diferente, quando nos demorávamos em noites longas a ler livros maliciosos e deliciosos ou a ouvir discos quase clandestinos (e este era-o, à época): devo-lhe este FMI, de José Mário Branco, trauteado como senha e contra-senha em tantos outros encontros e contextos. Por causa disso, o meu gosto musical moldou-se também entre a intervenção e a palavra.
É verdade que já ouvia Zeca Afonso das baladas ao mato, que Sérgio Godinho fazia o nosso salão de festas, que Fausto nos levava rio acima, mas FMI levou-me também a descobrir em profundidade outras canções de intervenção (Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira…) e o que era a obra de José Mário Branco, incluindo o coletivo do GAC, os trabalhos como produtor-compositor, as obras para cinema e teatro, e mais tarde, já nestas últimas décadas, a viagem pelo fado — de Camané a Kátia Guerreiro. E assim se tecem outros gostos que fui compondo na minha viagem musical.
Various Artists “Lonely Is An Eyesore“
(1987)
Houve um tempo em que o selo de uma editora era para mim garantia de que podia ouvir (e comprar) um disco quase cegamente. Les Disques du Crépuscule, Real World, a marca Made To Measure, da Crammed Discs, eram (são) algumas dessas editoras em que praticamente nem pestanejava na hora de picar um disco.
Depois havia a 4AD, a editora que Ivo Watts-Russell criou para durar a década de 1980 (mas que, felizmente, mantém a sua atividade), e na qual fui descobrir alguma da melhor música que ainda hoje ouço. Foi aqui que gravaram os Birthday Party, Matt Johnson dos The The, os Pixies ou os Bauhaus, os Xmal Deutschland ou His Name Is Alive…
À 4AD cheguei por causa de um programa de música na TV, o Music Box with Simon Potter, que passava no espaço da Europa TV, na RTP2.
O tal do Simon dedicou uma emissão a passar os vídeos de uma coletânea (e sempre gostei muito de coletâneas) chamada Lonely Is An Eyesore (nome retirado de um verso da canção dos Throwing Muses incluída no álbum), que juntava alguns dos principais nomes da editora: Cocteau Twins, de que já andava a ouvir o genial Victorialand, Dead Can Dance, The Wolfgang Press, Clan of Xymox, Dif Juz, This Mortal Coil, com Acid, Bitter and Sad, ou as já referidas muses de Kristin Hersh e Tanya Donnely.
Tudo somado, fui aos álbuns e apaixonei-me pelos ritmos encantatórios e hipnóticos dos Dead Can Dance, sobretudo em The Serpent’s Egg e Aion, pelos lirismos que voam de Elizabeth Fraser nos Cocteau Twins, pelas guitarras e vozes de Throwing Muses, e mais ainda pela diversidade misteriosa do coletivo This Mortal Coil, que juntava músicos de bandas da editora, apercebendo-me então que aquela belíssima Song To The Siren que já tinha ouvido, na interpretação de Fraser e Robin Guthrie, era de um dos mais espantosos discos da 4AD (melhor dito, da música em geral): It’ll End in Tears. Tudo somado: thank you, Simon Potter!

Marcel Cellier apresenta “Le Mystère des Voix Bulgares”
(1986)
Nos álbuns que influenciaram o meu gosto musical constam obrigatoriamente uns quantos de geografias muito diferentes, arrumados sob uma etiqueta tão genérica como surpreendente: músicas do mundo, a world music, que para os anglo-saxónicos inclui também o fado ou a bossa nova. Essas geografias arrumo-as de outro modo.
À cabeça há um disco absolutamente extraordinário, que nos chega da Bulgária, foi revelado ao mundo, antes da queda da cortina de ferro, por um produtor suíço, Marcel Cellier, e que a 4AD (lá está) resgataria do nicho onde vivia amplificando para todos estas “vozes que falam com Deus” (nome usado para um disco de produção portuguesa, sobre os Segredos da Música da Bulgária, registado em 1988).
O título dado à primeira recolha de Cellier impregnou-se de tal modo que Le Mystère des Voix Bulgares se tornou uma marca indelével e única e que, como todas as receitas de sucesso, foi copiada e multiplicada em muitas derivações, umas mais conseguidas que outras, com guerras em tribunal para registo do nome.
Neste caso trago-vos aqui o primeiro volume, como podia trazer ainda o segundo (há ainda mais dois a merecerem o nome e a atenção). Pilentze Pee é o tema de abertura que define o registo: vozes que nos sussurram como logo se elevam, numa dança de sons deste coros femininos que, para mim, se entranharam na forma como a música se foi moldando na minha vida.
(Não é de espantar que estas vozes se encontrem depois em discos de Kate Bush – outro nome incontornável no meu gosto – ou que nos arrepiem numa versão de Chamateia de António Zambujo.)
Nas músicas do mundo, viajo pois por muitas latitudes e longitudes. Podia juntar aqui o álbum Passion Sources, onde Peter Gabriel revelou a sua inspiração para a banda sonora do filme A Última Tentação de Cristo… Há muito mundo para viajar, já se percebeu.
U2 “The Joshua Tree”
(1987)
No tempo dos telediscos, em que a música também se via, aqueles rapazes divertiram-me em cima de um prédio até serem interrompidos pela polícia. Já disse que se ganha quando se é o irmão mais novo — e se ouvem coisas que os mais velhos trazem para casa. Foi o caso com os U2: Sunday Bloody Sunday e Bad já eram hinos para mim quando chegou novo álbum, The Joshua Tree. É o álbum da América, depois de The Unforgettable Fire, é a descoberta de uma América que os U2 nos apresentaram há mais de 30 anos, quando a 9 de março de 1987 chegou às lojas esta carta de amor pelos Estados Unidos e que nos fez também apaixonar pela América.
É também para muitos o derradeiro disco que vale a pena ouvir dos irlandeses, esquecendo esses muitos que o grupo se soube reinventar como poucos em Achtung Baby e Zooropa, o genial díptico berlinense, do início dos 90, e que nunca baixou a guarda, fosse no extraordinário Original Soundtracks 1, com Brian Eno, ou em Pop. Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. já nos contaram a sua história em 14 discos originais e muitas outras obras ao vivo ou em participações especiais e deixaram uma marca de génio que tanto moldou o meu gosto musical.
Foi a partir deles – e isto soará a sacrilégio para muitos! – que descobri os universos sonoros de Brian Eno e Daniel Lanois, que me embrenhei mais na América de Bruce Springsteen e Bob Dylan ou na poesia de Leonard Cohen (os irmãos também já tinham ajudado, mas os U2 convenceram-me), que me apaixonei pela voz de Johnny Cash e que me rendi a Lou Reed e a Siouxsie and the Banshees. Foi no deserto de Joshua que encontrámos o amor.

Radiohead “OK Computer“
(1997)
Gosto de Creep, daquelas guitarras sujas e da voz que cresce, gosto de pegar nos auscultadores numa loja de discos e ouvir a canção, como no filme, gosto deste britpop que não ficou fechado aos quatro cantos das ilhas e se abriu, curioso, a sonoridades distintas e distantes.
Por causa de Creep (e de Pablo Honey e The Bends, cassetes gravadas em casa de amigas) cheguei, claro, a OK Computer e tudo fez sentido: em 1997, entrámos a correr no século XXI, com os Radiohead a anteciparem-se ao milénio e cantarem-nos logo como ele era – OK Computer fechou-nos em casa, dias a fio, a ouvir o álbum que profetizava a idade digital que vivemos sem o adivinharmos, uma revolução em forma de disco, uma das suas obras maiores (e a mais icónica).
Nem as suspeitas guitarras que abrem Airbag, no início do disco, disfarçam o que logo se ouve: este álbum seria diferente, romperia com a britpop em que já estavam arrumados estes rapazes de Oxford. Se dúvidas houvesse, Paranoid Android, a segunda canção, desfazia-as numa assentada, numa das canções da minha vida.
Este disco é, já se percebeu, a porta de embarque para uma viagem ancorada no que melhor se fez da britpop: mais do que aquele benfica-sporting que se alimentava nas páginas dos jornais britânicos, ao que parece por conta de uma rapariga, foi pelos Blur (e derivados como Gorillaz, The Good, the Bad and the Queen ou Damon Albarn a solo), Pulp e Suede que mais naveguei, e só depois os Oasis. Mas no final do dérbi, regressei sempre aos Radiohead.
The Smiths “The Queen Is Dead”
(1986)
Ao contrário de tantos outros, é difusa a minha memória sobre a primeira epifania com os Smiths, com edições constantes naqueles anos da nossa adolescência em que trocávamos cassetes, discos e CD, sedentos de novidades.
The Queen Is Dead é de junho de 1986, a coletânea The World Won’t Listen é de março de 1987 e, logo em setembro desse ano, saía esse espanto que é Strangeways, Here We Come. E talvez para melhor responder ao desafio dos discos que influenciaram o meu gosto musical devesse incluir esta trilogia de descoberta e paixão.
Este The Queen Is Dead é o que é, um conjunto de canções sem mácula, daquelas que cantámos em coro, a sós, com mais ou menos álcool no sangue, no meio da pista de dança de uma matiné numa discoteca e à volta da fogueira, ao ouvido de alguém ou afundados no sofá a chorar mais uma tampa da miúda gira da turma do lado. Basta dizer que este álbum abre com The Queen Is Dead, tem I Know It’s Over, Bigmouth Strikes Again, The Boy With The Torn In His Side, Some Girls Are Bigger Than Others e, para sempre, a luminosidade incandescente de There Is A Light That Never Goes Out.
Um verdadeiro banquete que completava-se com lados B como Asleep, provavelmente uma das minhas três canções favoritas de sempre de Morrissey, Marr e companhia. Não admira que, com tanto para nos contar em tão curto espaço de tempo, os Smiths tenham sido a banda maior da nossa adolescência. Dos amores que ficam para a vida.