Aos 35 anos de vida, e passada uma década sobre o álbum anterior, os Pop Dell’Arte apresentam no novo “Transgressio Global” o seu melhor disco de sempre. Uma viagem por tempos, lugares e referências. Que afinal fala de nós, aqui e agora. Texto: Nuno Galopim

Foto: Céu Guarda

Não aceitar as regras que são impostas, transgredir os limites… todos os limites… A ideia é antiga, mas foi materializada numa canção que começou por ganhar voz em 2015 e agora, numa nova versão, integra a carne daquele que é o melhor álbum de sempre na obra dos Pop Dell’Arte. Mas para que dizer “o melhor” não gere equívocos nem leituras toca-e-foge, nada como contextualizar a coisa… E para isso é preciso viajar no tempo… No fundo, partilhando algo em comum com as ideias que escutamos neste novo Transgressio Global.

Em meados dos anos 80 Lisboa vivia um tempo de desafio e de busca de novas ideias. Era expressão das consequências de uma normalização da vida política e consequentes manifestações na vida cultural, passada uma década sobre e revolução de 74 e a liberdade que devolveu ao ar que respiramos. Na música (em concreto os espaços da popular e de algumas expressões exploratórias “de vanguarda”l, como então se dizia), o Rock Rendez Vous afirmava-se como importante palco na linha das atenções de novas bandas que queriam ser apenas iguais a si mesmas e diferentes de todas as outras. O recentemente lançado semanário Blitz dava conta do que ia acontecendo. E o programa Som da Frente de António Sérgio (na Rádio Comercial) fazia ouvir não apenas a música que estimulava os novos criadores nacionais como as propostas que aqui iam emergindo. Os Pop Dell’Arte não foram os únicos a surgir neste clima de efervescente desafio à criatividade. Mas pelo modo como juntaram referências – de Warhol a Fassbinder, sem esquecer importantes movimentos da aurora do século XX – e souberam olhar sempre para além da linha do horizonte das formas e regras instituídas, não só lançaram bases para um corpo artístico ímpar como, pela longevidade (e já lá vão 35 anos), sublinharam a conquista de um lugar de relevo na história da música portuguesa.

O percurso dos Pop Dell’Arte envolveu processos (sempre atentos e inteligentes) de atenção por referências que não se esgotavam na música ao seu redor. Ideias, épocas, geografias, eram transgredidas em favor de novas criações. Experimentaram a arte do corte e da colagem, até mesmo o ready made. Cruzaram escolas de pensamento com manifestações de formas musicais que o tempo foi vendo emergir. Bissextos no calendário da apresentação de novos discos, o certo é que a cada um juntavam algo novo e sempre desafiante. Seja a 45 rotações, como quando nos deram a escutar Querelle, Sonhos Pop ou Illogik Plastic nos anos 80, ou no formato de álbum, num percurso iniciado em Free Pop, de 1987, que é um dos mais importantes discos da história da nossa música pop(ular). Seguiram-se Ready Made (1993), Sex Symbol (1995) e, após uma longa pausa (durante a qual surgiu o EP So Goodnight, a que João Peste chamava um “epá”, como quem diz “é pá, estamos cá”!), em 2010 apresentaram Contra Mundum. Todos diferentes entre si. Mas todos alicerçados em princípios comuns, firmes na arte de desafiar, de procurar uma voz própria, de expressar individualidade através da partilha (e assimulação ou citação) de experiências formadoras. Transgredindo os limites. Todos os limites…

Evocar este caminho é, no fundo, levantar uma série de características que, num tempo novo, com outros elementos em jogo, fazem de Transgressio Global um disco que é diferente dos anteriores, mas ao mesmo tempo um espaço ao qual naturalmente confluem modos de pensar e agir que há muito definiram uma identidade. Bem gravado e produzido (e o primor técnico é de apontar), com um conjunto impressionante de 21 temas na versão em CD (e vale apenas escutar o “extra” Drinking Wine in the Aventine, que ultrapassou o limite de tempo do suporte físico e por isso está apenas disponível na versão digital), Transgressio Global não esconde, ao fim de meia dúzia de compassos, que é dos Pop Dell’Arte a música que estamos a escutar. Porém, mesmo marcada por essa demarcada personalidade e por vezes visitada por formas que nos transportam a outras etapas da sua vida, esta música é absolutamente nova, indiscutivelmente do aqui e do agora. Ou seja, este disco não seria possível há 35 anos.

Transgressio Global é, no fundo, expressão de veterania. E veterania não é palavrão. É coisa que sabemos elogiar num Scott Walker ou David Bowie tardios, num David Byrne, Steve Reich, Bob Dylan ou num Nick Cave do presente, pelo que com o mesmo sentido de respeito pela solidez e dimensão da obra e pela constatação de criatividade ativa, podemos reconhecer também aqui essa noção de veterania. A “frescura” que depois trespassa e alimenta a veterania é aqui a forma de viver, observar e comentar o contexto em que a esta nova música emerge, como se escuta por exemplo em The King Of Europe ou Anominous, duas das canções literalmente mais políticas da obra dos Pop Dell’Arte ou nota em Style is The Answer (to Almost Everything), que reflete sobre como muitas das expressões artísticas atuais já conheceram maiores ousadias, notando como a moda continua, contudo, a transgredir. Lá está… a transgressão… E essa é sempre a medula viva do que se escuta aqui.

A ideia de veterania (e é curioso notar como há álbuns de veterania que representam momentos de criatividade bem aproveitada, desde Blackstar de Bowie a um The Raven de Lou Reed, um Ghosteen de Nick Cave ou Blemish de David Sylvian) traduz-se aqui na forma como o novo disco dos Pop Dell’ Arte parte de uma síntese de visões e explorações de criações anteriores, que o grupo assimila e integra na carne do processo criativo na hora de novas demandas, no processo de busca pela matéria prima para as novas transgressões. Os Pop Dell’Arte trouxeram sempre pedaços de outras artes e ecos de criadores à construção da sua música. Berlioz, Fassbinder, o 2001 de Kubrick (deliciosamente transgredido em 2002)… A ideia de uma música que é expressão de desafio, irreverência, que traduz inquietude, sonho, visão e liberdade, não desapareceu. Pelo contrário, ganhou ainda maior fulgor e autoconfiança. E chama desta vez palavras de Sophia, de Camões ou, recuando mais ainda no tempo, do romano Gaio Valério Catulo (autor de uma obra com presença marcante do erotismo e que, por exemplo, Carl Orff abordou na cantata Catulli Carmina) ou de Ovídio. Arvo Pärt e Foucault são citados momentos de colagens. De Apollo a Orfeu, passando por Vitor Jara (numa versão de El Derecho de Vivir em Paz), o alinhamento, que começa por nos colocar em Creta, transportando-nos até um encontro entre o Minotauro e Picasso em Lisboa, em 2084, é uma vigem pelo tempo e pelo espaço. Há momentos que procuram pontos de vista que não são os nossos (os de hoje e de aqui), como será disso exemplo o já citado Drinking Wine in the Aventine. Mas mesmo num jogo que cruza épocas e lugares, que coloca a cultura greco-romana num espaço comum com a arte da colagem, este é um disco que fala de nós. De política(s), de identidade(s), de referências, de sonhos. Fala do nosso presente (da utopia de um futuro melhor), ciente do lugar onde vivemos.

Transgressio Global é um disco que só podia ser feito pelos Pop Dell’Arte. Mas que só hoje os Pop Dell’Arte poderiam fazer. Nos antípodas do conformismo, aprenderam cedo a falar a linguagem da transgressão. Nunca a deixaram de usar. Mas hoje dominam os léxicos. E em Transgressio Global dão-nos o seu melhor álbum. Pode não exercer culturalmente o mesmo poder sísmico que Free Pop lançou sobre os edifícios da criação pop portuguesa em finais dos anos 80. Mas não deixa de ser o seu melhor disco. Resistir, já dizia o grande José Mário Branco, é vencer!

“Transgressio Global” está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da Sony Music (a versão física é acompanhada, tal como em tempos o foi o CD de Sex Symbol, por uma coleção de autocolantes).

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