Um filme inspirado pelas canções de um disco

O mais frequente é o cinema inspirar a criação de música. Aqui o processo ocorreu ao contrário. “As Canções de Amor”, filme de 2007 de Christophe Honoré, teve como ponto de partida as canções de um álbum de 2005 do francês Alex Beaupin. Texto: Nuno Galopim

Muitos discos nascem a partir de filmes. Uns contêm a ora a música instrumental ou as canções da respetiva banda sonora. Outros juntam canções ou outras composições que os ambientes ou a narrativa eventualmente possam sugerir. Menos comum é vermos um disco como ponto de partida para a construção de um filme. E não estamos a falar de discos que juntem canções de um musical de palco. Um disco como qualquer um que um artista ou uma banda lancem no quadro da sua discografia… Foi precisamente isso o que aconteceu com Garçon d’Honeur. Editado em 2005 pela Naïve, foi o álbum de estreia do cantautor francês Alex Beaupain. Mas muitos só descobriram o disco dois anos depois, à boleia de uma experiência bem sucedida no cinema.

O caminho de Beaupin cruzou-se pela primeira vez com o cinema de Christophe Honoré, seu velho amigo, logo quando este se estreou nas longas-metragens, em 2002, com 17 Fois Cécile Cassard. Em 2006, uma vez mais com Honoré, Alex Beaupain ganhou as primeiras referências na imprensa internacional. Foi em Dans Paris, onde escutamos Avant La Haine e uma série de outras composições, que o disco com a respetiva banda sonora então fixou. Foi, contudo, uma canção de Kim Wilde que abriu caminho a uma mais profunda relação entre a música de Beaupin e o cinema de Honoré. Há uma cena em Dans Paris na qual a personagem interpretada por Romain Duris canta a Camboia, single de 1981 de Kim Wilde… A ideia de incluir literalmente canções no corpo de um filme, tornando-as parte do discurso das personagens – ao jeito dos musicais clássicos – abriu assim caminho para que algumas canções do álbum Garçon d’Honeur – em concreto Lave, Parc de La Pépinière, Se Taire, Au Ciel, La Beauté du Geste, gravadas neste disco – se transformassem nas primeiras peças de As Canções de Amor, que chegaria aos ecrãs em 2007.

         Para o novo filme Alex Beaupain criou algumas canções mais para servir a caracterização das personagens e a condução da próproa narrativa. A morte da companheira do músico tinha já motivado a escrita das canções do seu álbum de 2005. O sentimento de perda e o vazio que então viveu estavam já ali representados. A história de um amor interrompido pela morte da mulher amada, que alimentara a alma de Garçon d’Honeur representou, então ao lado de Honoré, o pontp de partida para uma trama com alguns pontos em comum que ganhou forma em As Canções de Amor.

Por linhas curtas, esta é a história de várias relações na Paris de hoje. Ismaël (Louis  Garrel) trabalha num jornal, a horas desencontradas com tudo e todos, inclusivamente Julie (Ludivine Sagnier) com quem vive uma relação a três. O terceiro elemento é uma amiga e colega de trabalho (Clotilde Hesme). Um acontecimento súbito baralha os peões do jogo. E novas ligações e relacionamentos acabam por se desenhar e evoluir, ao mesmo tempo que cada uma das figuras em volta de Ismaël encontra a sua maneira de lidar com a dor da perda. As canções surgem nas vozes dos próprios atores e por isso mesmo Honoré optou por valorizar a interpretação dos atores em detrimento de uma busca de outros patamares de exigência vocal. As canções definem as personagens e surgem em episódios fulcrais na ligação de momentos de uma história do nosso tempo. Como no seu filme anterior, Honoré olha a cidade, usa-a não apenas como cenário mas também como contexto de espaço e tempo onde a história acontece. São evidentes as marcas de admiração cinéfila pelo cinema de Jacques Demy, e também claras as heranças da Nouvelle Vague que, de resto, o próprio realizador sempre reconheceu. Apesar do protagonismo das canções de Alex Beaupin, o filme inclui ainda uma citação ao “clássico” Amoueux Solitaires, de Lio, e termina ao som de Barbara…

Se este é por um lado um dos melhores títulos da filmografia de Christophe Honoré, por outro representou para muitos o momento da descoberta da música de Alex Beaupin. Já o compararam a Calogero (pelo melodismo) ou a Dominique A (pelo cunho pessoal da escrita). Houve quem sugerisse afinidades com Serge Gainsbourg e Etienne Daho, referências maiores da canção pop francesa. Eu juntaria aqui, como referências com alguma proximidade, nomes como os de Arthur H, Vincent Delerm ou Benjamin Biolay, ou seja, vozes que no início do século mostraram vontade em renovar o mapa da canção francesa. Desde que o não associem a Nicoletta, Alex Beaupain não se importa com as comparações que eventualmente possam surgir… A vitória nos Césares (Melhor Banda Sonora) com As Canções de Amor vincou o estatuto que o filme lhe deu.

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