“Gimmie Danger”, o magnífico documentário de Jim Jarmusch sobre os Stooges (a banda proto-punk que nos revelou a figura de Iggy Pop em finais dos anos 60) integra a galeria de retratos da cultura pop/rock que o cinema tem vindo a construir nos últimos tempos. Texto: Nuno Galopim

Grandes nomes do cinema têm-se rendido à música para, através do grande ecrã, contar as suas histórias. Nos últimos anos vimos Martin Scorsese a fazer filmes sobre Bob Dylan e George Harrisson. Ron Howard deu-nos a ver um documentário sobre a vida em palco dos Beatles. E, entre outros mais, Jim Jarmusch transportou-nos no tempo até ao universo dos Stooges, a banda proto-punk que nos revelou a figura de ímpar Iggy Pop em finais da década de 60. É bem verdade que Jarmusch já tinha um filme sobre Neil Young. O mesmo a quem Jonathan Demme dedicou algumas das suas várias incursões pelos espaços da música. Mas o que outrora eram casos raros agora são cada vez mais situações habituais. E entre um panorama de oferta documental que, nos últimos anos, nos deu filmes de importante visibilidade sobre Kurt Cobain, Amy Winehouse, Nina Simone, Edwyn Collins ou Frank Zappa – com alguns apenas a passar em festivais, é certo – mostra que, mais do que nunca, o filão do documentarismo musical está na ordem do dia. E os grandes realizadores de Hollywood e dos circuitos de autor mais aclamados, estão atentos e a produzir.
Iggy tem agora 73 anos… Ele chama-se na verdade James Newell Osterberg Jr e é com ele que Jim Jarmusch abre Gimmie Danger, o documentário de 2016 com o qual nos conta a história dos Stooges, e nos diz, sem dieta no uso das palavras, que aquela foi a maior banda de rock’n’roll de todos os tempos. O que poderia até ser discutível. Mas que, convenhamos, serve bem a narrativa que depois se apresenta.
O sentido de “perigo” a que o título sugere alude a memórias que moram no passado. E é com uma informalidade doméstica, sentado numa cadeira em casa, de chinelos calçados e com um contagiante sentido de humor, que Iggy nos conduz através de recordações que lembram que, antes dos discos e dos palcos, houve um período de vivência próxima com os pais que cedo entenderam que a bateria que o jovem James instalara no centro da roulotte onde viviam (e que estava longe de ser das peças mais silenciosas lá de casa) tinha um significado a que o tempo acabaria por dar razão.
Num tempo em que ouvia sobretudo os blues, Iggy conta aqui que, um dia, fumou um charro perto das margens de um rio e percebeu então que não era negro tal como tantos dos músicos que mais admirava. Mas o momento deixou-o com vontade de fazer algo pela sua geração tão marcante como aqueles músicos negros que o haviam influenciado tinham feito para os seus. Foi o que aconteceu. E é essa a narrativa que Jarmusch aqui evoca juntando novas entrevistas com Iggy e os outros elementos da banda, intensas imagens de arquivo da sua história e outras mais que ajudam a desenhar os ambientes da América de então que lhes servia se cenário. Fotografias, velhos clips filmados, excertos de programas de televisão, juntam-se num corpo que cruza imagens de cores e texturas diferentes, mas que a realização toma como carne que dá músculo e forma a uma narrativa bem contada.
Em 1973, como o filme recorda, os Stooges chegaram a ser tratados como amadores e pouco imaginativos. Hoje, e após a reunião de 2003, são referência. E aqueles três discos invariavelmente citados como clássicos rock’n’roll. Jarmusch, que o percebeu na altura, mostra-nos agora porque assim é.
Vale a pena lembrar aqui que os três álbuns que os Stooges editaram na sua primeira vida – The Stooges (1969), Fun House (1970) e Raw Power (1973) – lançaram bases para o que, pouco depois, seria o punk. E que Jarmusch era presença habitual no CBGB, o bar de Nova Iorque onde o punk ganhou asas e voou. Há por isso aqui um tributo a quem abriu os caminhos que ali fizeram história.