Victor Afonso

É músico. E nos seus discos assina como Kubik. Mas Victor Afonso é também programador cultural do Teatro Municipal da Guarda. E é ele quem hoje nos apresenta a sua coleção de discos.

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Qual foi o primeiro disco que compraste?

“Violent Femmes” (1982) dos Violent Femmes. Caramba, lembro-me como se fosse hoje quando abri a encomenda e coloquei pela primeira vez a agulha do gira-discos no vinil para levar logo com a pungente canção “Blister in the Sun”. Emoções ancestrais…

E o mais recente…

Foram dois CDs em promoção da Fnac: um dos The Velvet Underground e uma coletânea dos The Smiths. Basicamente, para ouvir no carro. Ah, comprei os dois discos do Benjamin Clementine. Mas há anos que deixei de comprar discos novos (editados recentemente), seja em que formato for. Só procuro edições que quero mesmo ter em suporte físico por algum motivo especial. Tenho a sorte de ser profissionalmente programador cultural no Teatro Municipal da Guarda, pelo que os artistas que lá atuam me oferecerem constantemente discos (em CD, vinil, cassetes e até pen drives!).

O que procuras juntar mais na tua coleção?

Não sou um maluquinho por edições raras que foram editadas em 1987 na Coreia do Sul por uma editora independente que só editou 23 discos com numeração limitada ou algo do género. Nunca fui obcecado por relíquias discográficas. Nos meus tempos áureos de colecionador procurava sobretudo a música que me interessava, mas claro que tinha o culto das editoras e das edições em vinil. É preciso que diga que tenho também uma assinalável coleção de cerca de 1000 cassetes áudio (K7), todas catalogadas por género, ano, artista e classificação pessoal. Uma verdadeira militância em desuso, porque hoje os jovens por certo não catalogam ficheiros mp3. Comprei há poucos meses uma aparelhagem com leitor de cassetes especialmente para ouvir as velhas K7s. E continuam a tocar!

Um disco pelo qual estejas à procura há já algum tempo.

Li há tempos que existem edições raras dos Sex Pistols que chegam aos muitos milhares de euros, já para não falar em edições limitadas dos The Beatles ou Rolling Stones. Como referi, nunca fui obcecado por edições raras e caras. Satisfazia-me com uma edição standard, desde que gostasse da música, que era o motivo principal. Mas pensando bem, gostava de ter mais discos de vinil de artistas como Captain Beefheart, The Residents, Cecil Taylor, Ornette Coleman, Moondog, Tom Waits, Philip Glass e tantos outros.

Um disco pelo qual esperaste anos até que finalmente o encontraste.

Nenhum. Mesmo.

Limite de preço para comprares um disco… Existe? E é quanto?

Claro que existe um limite! Não nado em dinheiro e há prioridades na vida (ainda que a música seja ‘uma’ prioridade). Às vezes deambulo pelas prateleiras de vinil da Fnac ou de outra loja especializada e gostava de comprar uma ou outra edição de um disco icónico e remasterizado. Nem que seja pela qualidade gráfica da capa. Depois esbarro no preço de 30€ e retraio-me. Pode até ter uma prensagem de qualidade, mas… Sei que para os puristas da cultura do vinil este valor é uma pechincha, mas raramente paguei mais do que 20€ por um disco. Já por livros e edições de DVD paguei bastante mais.

Lojas de eleição em Portugal…

Do que conheço, a Louie Louie, a Carbono, a Flur, a Tubitek… Mas não sou assíduo, até porque moro muito longe de Lisboa ou Porto. Velhos tempos em que frequentava a Valentim de Carvalho vasculhando pelas novidades na secção de importação à procura de pérolas musicais, também na Bimotor, ou mandava vir discos da Ananana e da Contraverso, editoras especializadas em discos de importação (caros!) e música alternativa independente, verdadeiras fontes de nova e original música que tanto procurava.

O interior do país tem ainda lugares onde se possam comprar discos. Há feiras? Lojas de velharias, com discos?

Na Guarda, onde vivo, há mensalmente uma feira de antiguidades onde por vezes se encontram velharias interessantes, discos incluídos, sobretudo de música portuguesa antiga. Lojas físicas, não há nenhuma há muitos anos. Mas lembro-me nos anos 80 de uma loja de discos e cassetes num centro comercial decrépito no centro da cidade. O empregado era o senhor Carlos que estava ao balcão, um homem já de certa idade, calvo, muito resmungão (sempre que se lhe pedia para ouvir um disco) que nada percebia de música. Era o sítio onde me encontrava após as aulas do liceu com os meus amigos com o semanário BLITZ debaixo do braço. Surpreendentemente, o sr. Carlos conseguia encomendar os discos mais bizarros e alternativos que eu quisesse: desde Einstürzende Neubuaten a The Birthday Party, de Death in June a The Fall, de Public Enemy a Diamanda Galás, de Fred Frith a Pascal Comelade, de Dead Kennedys a Dead Can Dance. Apontava num papel o nome do artista e título do disco e encomendava. Não sei de onde. Mas a verdade é que era uma espécie de milagre como chegavam aqueles discos à Guarda no final dos anos 80! Claro que ele torcia sempre o nariz quando ouvia toda aquela música esquisita a tocar na loja. Mas foi uma bela e enriquecedora vivência.

Como te manténs informado sobre discos que te possam interessar como colecionador?

Isto é algo que nunca perdi: a paixão por conhecer nova música. Tenho 50 anos e continuo à procura de nova música que me estimule com a mesma paixão e entusiasmo como na época de adolescente. Sinto uma sofreguidão estética constante. Mas já não procuro com o sentido de “colecionar” e acumular, mas apenas simplesmente para ouvir e me deleitar. É basicamente por essa experiência de fruição estética e menos pela posse do objeto em si. A internet é um inesgotável novo mundo de exploração de nova música, não só através de plataformas de música digital (Bandcamp, Spotify, Soundcloud, Youtube…) como em sites especializados de música, sites de reviews de discos ou o que seja. Já não compro nem revistas nem jornais especializados nacionais ou estrangeiros (e o dinheiro que gastei!), outrora a principal fonte de acesso ao conhecimento.

Que formatos tens representados na coleção?

Na minha coleção tenho vinis, muuuuitas cassetes e muuuitos CDs

Os artistas de quem mais discos tens?

Provavelmente, Joy Division, Bauhaus, Philip Glass, Miles Davis, The Fall, Nick Cave, Amon Tobin, John Zorn, etc.

Editoras cujos discos tenhas comprado mesmo sem conhecer os artistas…

Ah, as editoras! Eram tão importantes como os artistas. Havia tantas e tão boas que geravam pura militância de gosto, cuja nova edição era para adquirir mesmo não conhecendo a banda ou o projeto porque sabia que representava um garantido selo de qualidade artística, fosse em que género fosse: Factory, Mute Records, Warp, Mute, 4AD, Mo’Wax, Ninja Tune, Rough Trade, Sub Pop, XL Recordings, Blue Note, Ipecac Recordings, Metalheadz, Touch and Go, Young God Records, Matador, Thristy Ear Recordings, Impulse!, e muitas outras ainda mais obscuras, alternativas e independentes que fizeram tanto pela divulgação da música neste planeta. E não esquecer as editoras independentes portuguesas que tanto fizeram pela música emergente portuguesa como a Fundação Atlântica, Dansa do Som, Área Total, Ama Romanta, Thisco, FlorCaveira, etc.

Uma capa preferida.

Current 93 – “Swastikas For Noddy” (1988)

Um disco do qual normalmente ninguém gosta e tens como tesouro.

Half Man Half Biscuit – “Back in the DHSS” (1985). Não tinha nenhum amigo na altura que gostasse deste disco (não sei se ainda tenho agora), mas é uma preciosa peça de criatividade musical e de humor desbragado tipo redneck. Ainda hoje é vanguardista na sua profunda e subtil bizarria pop, num cruzamento entre Captain Beefheart, The Butthole Surfers e Tom Waits carburado com ácidos.

Como tens arrumados os discos?

Em estantes normais por ordem alfabética dos músicos/bandas. Tenho tudo catalogado e numerado. Mas tenho muitos mais CD do que vinis. Também todos catalogados e classificados segundo o meu gosto pessoal e subjetivo.

Um artista que ainda tenhas por explorar…

Modéstia aparte, considero-me um conhecedor de música acima da média (ok, não sei qual é exatamente o critério para dizer isto), afinal ouço e coleciono música (de muitos géneros diferentes, atenção!) há 34 anos. Mas ainda assim, como é óbvio, não conheço o suficiente para conhecer tudo a fundo. Há artistas e compositores que preciso de aprofundar, como os grandes compositores para cinema (a minha outra paixão) como Nino Rota, Ennio Morricone, Bernard Herrmann e Spike Jones e Raymond Scott (que faziam música para cartoons). Sou grande fã de Danny Elfman, já agora. Outra das minhas intenções com tempo é explorar a relação entre o jazz e o cinema (e a literatura também), linguagem musical pouco explorada na sétima arte – mas o que existe é sublime. E com a minha formação em Educação Musical, ir mais a fundo no conhecimento da música erudita contemporânea com compositores como Xenakis, Stockhausen, Ligeti, Robert Ashley, Nono, Cage, Penderecki, Terry Riley, Harry Partch e tantos outros vanguardistas.

Um disco de que antes não gostasses e agora tens entre os preferidos.

Talvez os discos dos anos 2000 do Scott Walker que no início não gostava muito e que aprendi a gostar porque me obrigaram a uma atenção auditiva exigente. Um processo de fruição de que gosto desfrutar com tempo. E acabei por reconhecer a sua genialidade artística. Scott Walker tinha uma voz única no contexto de uma música incrivelmente sofisticada e é um caso raro de um músico, cantor e compositor que quanto mais envelhecia mais música experimental e disruptiva fazia (geralmente é ao contrário). Mas mais do que discos, aprendi tarde a gostar (e muito) de géneros musicais como o free jazz, a world music e a música minimal repetitiva (sob a influência direta do saudoso Jorge Lima Barreto).

Dos discos que editaste como Kubik qual ou quais são mais procurados por colecionadores? Tens exemplares de todos na tua coleção?

O mais procurado é o primeiro, “Oblique Musique” de 2001, volta e meia tenho colecionadores que me contactam a perguntar onde podem comprar. É muito difícil porque acho que esgotou e foi descontinuado em catálogo. É curioso porque foi o disco de Kubik mais experimental e transgressor mas aquele que teve críticas mais positivas da imprensa e melhor aceitação dos melómanos. Por incrível que pareça, falta-me um exemplar do disco de Kubik na minha coleção – “Metamorphosia” de 2005, considerado pela BLITZ o segundo melhor disco português desse ano. 

Há discos que fixam histórias pessoais de quem os compra. Queres partilhar um desses discos e a respetiva história?

Como vivo perto de Espanha, quando não havia internet nem acesso à informação como hoje, procurava-a no país vizinho (porque tinha lá um amigo a estudar em Salamanca). Ia à fronteira de Espanha de propósito para comprar revistas de música e de cinema, discos e DVDs. Um dia, no início dos anos 90, em Salamanca, entrei numa loja de discos. A música que estava a tocar na loja arrebatou-me de imediato a atenção e deixou-me de queixo caído. Era uma música exótica, originalíssima, uma mistura visceral de ritmos norte africanos com uma linha de baixo rock e um canto feminino excêntrico. Na altura ouvia muito o clássico “My Life in The Bush of Ghosts” de David Byrne e Brian Eno e aquilo soava-me familiar. Cheguei ao balcão e perguntei no meu melhor espanhol: “Que disco está a tocar?”. Ao que o empregado respondeu: “Es un disco de puta madre! La cantora se llama Cheikha Rimitti y es argelina.” O disco chamava-se “Sidi Mansour” (1994) e contava com a sublime participação musical do guitarrista Robert Fripp (King Krimson), do baixista Flea (Red Hot Chili Peppers) e do guitarrista East Bay Ray (Dead Kennedys). Comprei o CD sem pestanejar, a minha costela de ouvinte de propostas fusionistas e arriscadas (rock com canto tradicional raï argelino) obrigou-me a adquiri-lo e foi um disco que desbravei de forma insistente e que me encheu as medidas durante anos (e conheci-o por mero acaso). Tenho também a história de um dia estar no meu quarto a ouvir o disco de estreia  “Psychocandy” dos The Jesus and Mary Chain, acabado de comprar, e um amigo que estava comigo e não conhecia a banda começou a mexer no equalizador da aparelhagem. Perguntei-lhe o que estava a fazer e ele respondeu: “A equalizar o som do vinil porque está cheio de ruídos”.

Um disco menos conhecido que recomendes…

Há muitos discos “menos conhecidos” que podia recomendar. Isto porque a música mainstream e comercial nunca foram o meu foco de interesse. O que sempre me entusiasmou na minha vida foi conhecer música original e criativa, aventureira, desformatada e destemida esteticamente, viesse de que género viesse (ou de cruzamentos de géneros) como o disco que descrevi na pergunta anterior. E ainda hoje vou descobrindo propostas sonoras espantosas, como um recente álbum de uma banda finlandesa chamada Oranssi Pazuzu que faz uma fusão estonteante de black metal, rock progressivo, psicadelismo e minimalismo à Steve Reich (!) com o recém-editado álbum “Mestarin Kynsi” (como os igualmente bons Zeal and Ardor que fundem gospel com metal). Ou os dinamarqueses Heilung, incrível banda que evoca a cultura dos antigos vikings com uma música tribal e hipnótica. Ou Alexander Noice, um desconhecidíssimo e talentosíssimo músico virtuoso americano que faz a fusão de Philip Glass nos arranjos vocais com jazz e rock. Num registo temporal mais longínquo, vou apenas citar três relíquias musicais menos conhecidas do grande público que continuo hoje a escutar com prazer e devoção: “Gift” (1986) dos The Sisterhood; “Dreams of Reason Produce Monsters” (1987) de Mick Karn (ex-Japan) e “Book of Horizons” (2004) dos Secret Chiefs 3, que fundem música árabe com rock e experimentalismo.

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