Em finais de 2019 Jean Michel Jarre criou uma App que gera música diferente para cada utilizador. Há uma semana deu um concerto numa plataforma visual. Hoje ligamos a máquina do tempo para escutá-lo sobre episódios de uma carreira que dele fez um dos mais aclamados pioneiros da eletrónica na história da música popular. Texto: Nuno Galopim

Foi em 1968, há já mais de meio século, que Jean Michel Jarre encontrou o seu caminho. Tinha então 20 anos e já algumas experiências na música, não só no percurso de formação que fazia há já algum tempo no conservatório, como em primeiras manobras pop, tendo tocado guitarra numa banda. Mas foi em 1968 que começou a trabalhar com fitas magnéticas e outros novos instrumentos, juntando-se pouco depois ao Groupe de Recherches Musicales (dirigido por Pierre Schaffer), um dos laboratórios de invenção de novas possibilidades para a música eletrónica, por onde Stockausen tinha passado nos anos 50. Foi aí que encontrou ideias e explorou ferramentas que lhe permitiram desenhar primeiras formas numa série de obras que foi compondo por aqueles dias. Composições como La Cage e Erosmachine (que editou num primeiro single lançado em 1969), o bailado AOR (de 1970) ou a banda sonora de La Chanson des Granges Brulées (1973), que recentemente surgiram integradas no alinhamento da antologia Planet Jarre, são as pistas mais remotas de um percurso que passa por clássicos como Oxygène, Equinoxe, Les Chants Magnetiques, por momentos de exploração como Zoolook ou Revolutions, por aventuras como Les Concerts en Chine e um gosto permanente em acreditar como a tecnologia pode ajudar a moldar revoluções.
Como descobriu a música electrónica?
Frequentei primeiro o ensino clássico, passei depois por grupos de rock. E, através de um colega de liceu, entrei num grupo de pesquisa musical que dependia da televisão nacional, a ORTF, e que era dirigido pelo Pierre Schaeffer. Foi ele quem inventou a música concreta, a música eletroacústica. Essa experiência mudou a minha vida como artista. O meu professor explicou-me então que a música não era apenas feita de notas e de acordes, mas também de sons. E que a diferença entre o ruído e o som musical residia na mão do músico e na intenção artística. Esta ideia mudou a música do século 20, e devemos-lhe isso a ele. Ele inventou a noção de sample, de loop, o delay, os sons rebobinados, os sons em ralenti, tudo o que entendemos como sound design e que hoje está na base da composição musical. Essas ideias vêem de França e dele. E não dos Estados Unidos, de Inglaterra…
Pierre Henry trabalhou com ele…
Sim, era seu acólito, mas não tinha essa vocação de investigador, quase universitário. Não tinha essa perspectiva científica, antes mais humanista.
Pierre Schaeffer tem, assim, um papel determinante na sua formação?
Sim. Mudou-me e com ele entendi o que queria fazer. Nessa época eu pintava. Estava muito próximo de uma certa abstração lírica. Figuras como Jackson Pollock ou Pierre Soulages influenciaram-me bastante. E então encontrei um espaço de relação possível entre a música eletroacústica. A forma como misturava as frequências assemelhava-se a modos de misturar as cores. Não para fins realistas. Mas com vista à abstração. Uma abstração, para mim, contudo, mais concreta e até mais próxima do realismo que a figuração.
E como partiu daí para a música?
Fiquei obcecado com uma ideia de tentar ligar aquela música contemporânea, de laboratório, à música pop. E de encontrar, porque já privilegiava a melodia, encontrar pontes entre essas realidades. Isto acontece dez anos antes de Oxygène. Trabalhava com processos de transformação de sons… Fiz várias tentativas e editei até discos falhados.
Fez bandas sonoras…
Sim, fiz música para cinema. Produzi para vários artistas… No fundo foram trabalhos práticos em vários domínios. Mas num canto do meu coração, uma voz surgia já bem clara. Fiz então Oxigène perante uma espécie de indiferença total. Em casa, numa cozinha modificada, com um estúdio minimalista, o que era o oposto do politicamente correcto. Isto porque, nessa altura, a música “séria” fazia-se em estúdios de facto. O que mudou, claro… Trabalhei com um velho gravador de oito pistas. E já então pensava que, um dia, teria de o gravar de novo com um equipamento “a sério”… Quando a alta definição surgiu, há poucos anos, senti que era chegado o momento. E usei o 30º aniversário como pretexto para o fazer.
Nessa altura já os Kraftwerk, Wendy Carlos, Tangerine Dream, entre outros, tinham lançado discos. Certamente escutou-os. Sentiu que essas músicas não eram o seu caminho?
Exatamente. Nessa época sentia um enorme respeito pelos trabalhos que iam surgindo à minha volta. Não havia Internet… A música pop era uma música de troca, mas a electrónica era ainda uma música de experimentação. Laboratorial. A Alemanha era a Alemanha, e a França era a França. Não havia muito contacto. Ouvia o que se fazia, mas sentia que se mantinham certos paradoxos e contradições na música electrónica. A primeira dessas contradições foi criada pelo Walter Carlos, com o Switched On Bach, que foi um êxito imediato nos Estados Unidos e em Inglaterra. Mas que projectou nas pessoas uma enorme ambiguidade sobre os sintetizadores. Os sintetizadores eram então apresentados como instrumentos “falsos”, capazes de imitar os sons do piano, dos violoncelos, por aí adiante… Passava-se assim ao lado das verdadeiras potencialidades dos sintetizadores e da sua capacidade de abertura a novos sons. Depois vieram os alemães. E deles veio uma noção de apologia da máquina. Abordavam a música electrónica de uma forma expressionista, quase mecânica. Os Kraftwerk, sobretudo, elevaram este conceito a um extremo (o que não impede que adore o que fizeram). Mas promoveram uma noção de música electrónica como algo que é frio, robotizado, deshumanizado. Isso criou novas ambiguidades para a música electrónica. E dizia-se que era uma música fria, urbana, de desespero, era a metrópole…~
E para si?…
Para mim era o contrário. Estes eram os instrumentos mais sensuais e mais orgânicos que conheço. Podem ser abordados como quem faz culinária. E procurava fazer com eles uma música que não se baseava na repetição automática de eventos, mas antes na não repetição e, sobretudo, sem automatismo. Oxygène é, nesse aspecto, um disco diferente porque não há um som que se repita. Todas as sequências são feitas à mão, sem sequenciadores.
Há, assim sendo, diferenças substanciais entre a música electrónica que, nos anos 70, estava a surgir na Alemanha e na França?
Quando comecei a fazer música electrónica não havia mais ninguém a fazê-la em França e quase ninguém na Alemanha. Foi muito antes da Internet e não tínhamos contacto real uns entre os outros. Íamos trabalhando em laboratórios e estúdios. Lembro-me de, quando peguei pela primeira vez no Autobahn, dos Kraftwerk, ter achado que seriam uma banda californiana a cantar em alemão… Pensava que eram uns Beach Boys techno… Parecia-me até uma coisa bem cool, a ideia de uma banda americana a cantar em alemão… É claro que acabei por saber que eram afinal alemães, mas a verdade é que estávamos muito afastados. Nessa altura os alemães estavam a abordar a música electrónica de uma forma mais robótica e fria. Eu tinha uma abordagem mais impressionista. Seria uma coisa mais latina ou mesmo francesa, com uma valorização da melodia e com heranças de Ravel, Debussy, Satie… Mais aquelas influências da arquitetura e do cinema francês e mesmo da pintura dos impressionistas. O facto de procurar criar paisagens sonoras, de optar por abordagens mais orgânicas na criação dos sons, das frequências, das ondas… Abordagens mais tácteis…
Como foi acompanhando as linhas evolutivas que foram surgindo coma evolução das formas musicais depois da sucessão inicial de discos que fixou as bases da sua linguagem?
A música electrónica para mim é uma coisa viciante. Há momentos de prazer e a noção de que não posso fazer mais nada. Sempre tive interesse em ir ouvindo o que me ia atraindo. Quando se passa muito tempo a trabalhar num sector acabamos por definir redes de relacionamentos… E com a internet chegou depois ainda mais informação. Passei a ter contactos diários com muitas fontes, pessoas a descobrir coisas… Ao mesmo tempo que por vezes acabamos até a nos redescobrirmos a nós mesmos. A coisa funciona em ambos os sentidos.
O álbum Oxygène foi criado num estúdio montado na sua própria cozinha…
Sim, é verdade.
Não é curioso que, 40 anos depois, a música electrónica possa novamente ser criada em casa, num pequeno quarto?
No DNA da música há um lado de solidão. É uma atividade solitária… Um como como o trabalho de um escritor ou o de um pintor. E foi por isso que quis partilhar experiências com artistas de que gosto num patamar ligado ao processo criativo. Num estúdio caseiro estamos sozinhos… Estamos nus, com todas as nossas dúvidas e fraquezas. E quando alguém abre a porta a sensação é tocante…
Como recorda hoje, a esta distância, as opções que tomou no processo de composição de Oxygène?
Quando compus Oxygène, tinha a parte dois feita antes de pensar na parte um. E em termos de composição essa é uma boa solução, que deixo mesmo como conselho aos mais jovens músicos. Ou seja, partimos do meio e temos, depois, de inventar um começo. George Lucas fez o mesmo com A Guerra das Estrelas. E quando se inventa, então, esse começo, temos um elemento de surpresa mais forte em mãos. Porque sabemos onde vamos ter, mas quem vai escutar não imagina ainda. Quando começamos pelo princípio estamos, como o ouvinte, sem saber onde vai aquela música dar… Assim temos esse elemento de vantagem. E podemos surpreender. Tudo isto para dizer que a composição de Oxygène é simples, mas longe ingénua. E era diferente de toda a música electrónica da época, talvez sendo essa uma das razões objectivas do seu sucesso. Havia ali algo onde as pessoas se reconheciam se uma forma sensual, emocional, e não apenas intelectual.
O crânio que descobrimos na capa do disco, sob a “pele” do planeta, é outra expressão dessa ideia de humanidade?
Sim, mas ao mesmo tempo esta era uma música que as pessoas associavam muito à ficção científica, ao futuro… Sempre gostei de ficção científica. Gosto do filme de Kubrick, dos livros de Arthur Clarke. Mas esta música não a ligava ao espaço sideral. Esta era, para mim, uma música do espaço vital, do que nos envolve.

Uma música da biosfera?
Exatamente, mais ligada à biosfera do que à estratosfera… Ligo muito o meu trabalho às questões do ambiente. Essa relação entre a música e o espaço interessam-me bastante. Daí o facto de fazer concertos ao ar livre. Ao mesmo tempo pensando no planeta, no ambiente, de uma mensagem ecológica não dogmática ou em forma de lições, como muitos artistas às vezes fazem. Pelo contrário, optando por uma mensagem mais subjetiva, mais poética, que me parece mais ser o trajeto do artista. O artista deve passar mensagens do ponto de vista emocional e não dogmático. Oxygène, nesse ponto de vista, é precisamente isso. E o grafismo relaciona-se com essas preocupações, que são ainda atuais.
Deu-lhes continuidade?
Equinoxe, mais tarde, também é algo que alio ao planeta. O concerto que depois dei em La Defense tinha como temática o ambiente e foi, também, uma homenagem ao comandante Cousteau. Na Dinamarca dei um, num campo eólico. Em Marrocos outro, integrado no programa Water For Life, das Nações Unidas. Ao longo da minha vida tenho tentado manter uma atitude coerente sobre as questões do ambiente. E Oxygène contribuiu, à sua maneira, para chegar às consciências, de uma forma poética, transversal, emocional, sugerindo essa ideia de respeito e amor pelo planeta.
Nem todos os seus discos resultaram em sucessos colossais. Um disco como Zoolook (1984) está ainda à espera de ser redescoberto? É um disco importante no estabelecimento de relações possíveis das máquinas com a voz e junta até a presença de Laurie Anderson, com quem voltou a colaborar depois em Electronica…
É um dos meus discos preferidos!… Por vezes temos discos na nossa vida sobre os quais temos muitas expectativas mas que não encontram um público com esse mesmo entusiasmo. Às vezes as coisas estão mais em fase ou em contra-ciclo com o que está a ser ouvido, com o que está mais underground… Nunca se sabe… Trabalhei tantos anos no projeto Eletronica mas, até ao dia do lançamento, não tinha ideia de como seria acolhido… Nunca sabemos como surge o sucesso. É uma coisa muito misteriosa.
Surpreendeu-o o sucesso de Oxygene?
Sim, totalmente. Até porque todas as editoras tinham recusado aquela música. Estávamos no tempo do disco e do punk. Que música era aquela, perguntavam. Os temas não tinham título… Eram longos e não davam para passar na rádio… Sem um single evidente… Era um ovni total face à produção da época. E tinha o nome de um gás… Até a minha mãe dizia que era bizarro ter dado ao disco o nome químico de um gás… E depois aquela capa, com a Terra… Para os ingleses e os americanos o facto de eu ser francês era outro handicap… Mas depois tudo mudou. O disco saiu e as atitudes mudaram. E o que era negativo virou positivo. O facto de ser francês funcionou como exotismo. A Radio 1 inglesa tocou o disco na íntegra. O mesmo aconteceu na rádio francesa. Foi um fenómeno…
O sucesso de Oxygene determinou o caminho que a sua música depois tomou? Exquinoxe e Les Chants Magnetiques parecem continuações de uma mesma demanda…
Equinoxe, sim, sem dúvida. Fazemos um primeiro disco normalmente sob uma inocência total. E talvez por isso os primeiros álbuns são habitualmente tão interessantes. São muitas vezes imbatíveis. Têm uma dose de inocência que não se repete. É como qualquer primeira vez… Além disso neles metemos um pouco de tudo, quase como numa história de vida até então. Depois vem a pressão de quem tem interesse, as expectativas, as responsabilidades… E por vezes podemos cair na armadilha, que é a maior que um artista enfrenta, que é a da renovação, da reinvenção. É uma aldrabice total essa ideia da renovação! Creio que um artista tem uma única coisa a dizer na sua vida. E quando mais rapidamente o compreende, melhor para si… E são os media quem habitualmente insiste, sempre que nos perguntam o que o disco tem de diferente do anterior… Pouca gente tem a coragem de dizer que não há nenhuma. Que é uma outra forma de dizer a mesma coisa. Quando se vê a obra de uns Beatles, um Fellini, um Garcia Márquez, um Salvador Dali, um Mozart, um Miles Davis, no fundo diz sempre o mesmo. Tem uma coerência. Podemos dizer que há períodos, que há uma evolução. Mas no fundo dizem sempre a mesma coisa. Têm um universo que procuram desenvolver e completar. Não saltam de um universo para outro.
Como pensou a passagem da sua música do estúdio para o palco?
Os instrumentos de música acústica foram criados para a performance, mas os de música electrónica surgiram no laboratório, nos estúdios. Não para a performance, mas para a experimentação. E foi preciso, depois, pensar como levá-los ao palco. Estar duas horas atrás de um laptop não é a coisa mais sexy do mundo em palco! Como levar, então, o lado físico dos instrumentos do rock, ao palco de um concerto de música electrónica? Procurei, então, uma certa correspondência visual com a música que faço. Instintivamente pensei na ópera. Os compositores abordavam cenógrafos, carpinteiros, pintores, decoradores, e mesmo de escritores, para visualizar a sua música. Usei os instrumentos do meu tempo: o vídeo, o laser, etc…
E a opção pelos grandes espaços, como surgiu?
Sempre pensei que a minha música não era coisa de caves, como o rock, mas sim do espaço público. Procurei lugares… Depois pensámos na dimensão dos espaços. Ao ar livre, podemos ter mais gente que numa sala. E as coisas foram-se transformando. Além disso sempre vivi obcecado pelo one off, pelas coisas que não se repetem. Isto deve vir dos meus dias de infância, em Lyon. Morava numa praça e lembro-me dos dias em que o circo chegava. Faziam o espectáculo e iam embora no dia seguinte. Quem via, via, quem perdia, não via. Não havia segunda vez. Quis, então, fazer coisas que não se repetissem. Sobretudo numa época em que tudo pode ser arquivado. Hoje podemos guardar os programas de televisão e ver mais tarde… Mas ver o filme de noite ou na manhã seguinte não é a mesma coisa. Temos de escolher o momento e viver em função dessa opção. As pessoas sabem que o concerto acontece naquele dia, e não depois. São emoções efémeras, mas que podemos partilhar uns ao lado dos outros. Por todas estas razões os concertos ganharam esta expressão. E também porque, ano após ano, me foram oferecendo a possibilidade de actuar em locais irrecusáveis.
Como por exemplo?
Houston… À partida não me interessava… Não tinha relação alguma com o Texas. Mas a NASA entrou em cena… Fui ver o local, gostei da arquitetura…
Mas foi um concerto com uma face de tragédia, dada a explosão do space shuttle, que impediu que um astronauta entrasse em directo do espaço…
De facto. A NASA, pela primeira vez, envolveu-se numa acção como aquela. Refletimos sobre o que se poderia fazer e disseram-me que um dos astronautas era saxofonista. Escrevi uma peça para ele, esperando que dela gostasse. Gostou muito, ensaiou muito… Ensaiámos juntos… Depois a nave explodiu na largada e fiquei devastado, como toda a gente ficou. Mas telefonaram-me a dizer que não devia deixar de fazer o concerto. Pelos astronautas… E foi o que se conhece… As pessoas saíram à rua, a estrada ficou bloqueada. Um milhão de pessoas… Nunca tinha acontecido.
Não foi o seu único concerto épico…
Em Moscovo esperava 30 mil pessoas e apareceram três milhões! Oxygene e Equinoxe foram, na altura, músicas ligadas a uma mensagem de evasão. São acontecimentos que catalizam uma energia, mas dos quais não sou o único responsável.
Acha que a ideia de que era o homem dos mega-concertos ao ar livre fez com que as pessoas não tivessem noção das outras dimensões e caminhos da sua obra?
Concordo absolutamente com essa visão. Os concertos e a dimensão do sucesso dessas atuações criou uma espécie de cortina de fumo entre a música e o público. As pessoas estabeleceram um contacto através do som dos grandes êxitos em vez de partirem à descoberta dos álbuns por si… Curiosamente quando terminei o projeto Electronica não pensei no palco. Era então um projeto musical discográfico sem qualquer ideia de palco. Só depois comecei a juntar ideias para uma digressão mundial. Mas é verdade que, a dada altura, o sucesso dos grandes concertos ao ar livre criaram essa cortina que impediu que as pessoas prestassem mais atenção ao real sentido de cada álbum.
Foi por isso importante ter feito digressões com outro aparato, como aconteceu quando apresentou Oxygène, tendo outro tipo de contacto com as pessoas, que assim prestaram mais atenção à música e não aos efeitos visuais?
A dada altura quis partilhar com o público toda a alegria e entusiasmos que há na criação musical, que na verdade é algo muito semelhante à culinária. E queria convidar, assim, as pessoas a entrarem na minha cozinha. Foi o que fiz nessa Oxygène Tour… No futuro gostaria de tentar juntar essas duas realidades. Encontrar um formato em que poderia estar a solo, mas ter também expressões possíveis em arenas ou ao ar livre.
Tinha a mesma ideia de ‘one off’, que referiu para os grandes concertos, quando lançou em 1983 o álbum Music For Supermarkets apenas com uma cópia, num gesto em tudo diferente do habitual no mercado da música popular gravada?
A indústria da música sempre cometeu muitos erros. E o Music For Supermarkets era uma reação ao facto de o mundo da música se ter transformado numa indústria, vendendo os discos como pasta de dentes ou sabonete. Pensei que o mundo da música estava a jogar um jogo muito perigoso…
É o seu disco punk?
Talvez, mas sem a ideia de “no future”… Era mais uma chamada de atenção à indústria da música. Tinham encontrado a sua galinha dos ovos de ouro. Não iam matar a galinha, mas a relação das pessoas com o suporte musical e, no fim, com a música. Iam vender discos como quem vende iogurtes. Iam meter a música nos supermercados. Vender uma coisa que, afinal, não parecia ter valor. Que se guardava num plástico… Isto era o CD… Ao passo que o vinil era como o livro… As pessoas estavam convencidas que o CD era a liberdade, a libertação. Mas perderam a verdade física da música. Deixaram se ser tocados… Hoje a música diz-se que não tem valor. É gratuita, está na Internet. Ninguém a quer comprar. Tudo vem desse momento. Isto era o que eu queria dizer com Music For Supermarkets. Quem quisesse podia-me piratear uma vez, porque o disco passou uma vez na rádio. Eu sabia que isto era o que se ia passar no futuro. Estávamos em 1983 e não me enganei.
O que pensa do regresso do vinil ao consumo da música?
Convém não termos ilusões: o som do vinil não é o ideal. O erro foi termos pensado que o som do CD era melhor! O som do vinil é menos mau do que o do CD. E o do CD é menos mau do que o do mp3… Não quer dizer que não possamos melhorar a qualidade do som, rumo a algo de alta definição… Mas para já, com o tipo de processamento que temos, o som do vinil é melhor pelo calor e outras razões.
Entre 2015 e 2016 lançou o díptico Electronica que juntou músicos seus contemporâneos e outros que, de certo modo, podemos ver como seus descendentes. E cabem todos no mesmo projeto… A música electrónica é, desde logo, a linguagem comum a todos…
Foram precisos quatro, quase cinco anos, para completar todo este projeto desde o dia em que o comecei a conceber até aquele em que a música foi finalmente editada. A ideia era a de juntar artistas que admiro e que de certa maneira foram fonte de inspiração para mim ligados, direta ou indiretamente, à cena da música electrónica, e cobrindo assim quarenta anos de criação música, ou seja, desde que comecei. Depois foi a etapa de trabalho…
Como contactou os diversos colaboradores que chamou a este projeto?
Há hoje em dia um hábito de fazer colaborações que se resumem a enviar ficheiros pela net, sem que as pessoas se encontrem de facto. E muitas das coisas são feitas sem contacto pessoal, a não ser que seja exigido por motivos de marketing. Com este projeto a minha ideia era a de viajar e encontrar-me fisicamente com todos os artistas com os quais queria trabalhar. Antes do encontro havia já uma peça musical, uma maquete criada em função da ideia que tinha face a cada potencial colaborador, mas deixando espaço para que cada um depois de pudesse expressar. Toda a gente aceitou colaborar… E com tantas ideias e colaborações nas mãos optei por fazer dois álbuns e não apenas o que inicialmente tinha imaginado.
Um dos colaboradores que chamou foi Edgar Froese, dos Tangerine Dream, um contemporâneo seu…
Foi o último trabalho que fez…
No disco junta várias gerações de músicos e, com eles, necessariamente formas bem distintas de trabalhar formas e linguagens da música electrónica…
Sim, de facto. Ao ter o Edgar Froese, os M83 ou Gesaffelstein estava a chamar pontos de vista bem diferentes sobre a minha música. Eu e os Tangerine Dream começamos a fazer música mais ou menos na mesma altura, por isso temos em comum um percurso longo. Para os M83 ou Gesaffelstein eu sou um pioneiro porque estava lá quando começaram a procurar as suas influências. Quando eu comecei a fazer música electrónica não tinha heranças. Tinha um professor, chamemos-lhe mentor, que foi Pierre Schaeffer… Mas não havia uma história para a música electrónica então. Agora para estes novos artistas, quando começam, há uma história de quarenta anos com muitos artistas relevantes. E só por isso as abordagens são desde logo necessariamente diferentes. Mas ao pegar em temas como Zero Gravity, com os Tangerine Dream ou Immortals, com os Fuck Buttons, para quem não sabe quem é quem ou não conhece o contexto será difícil identificar se foram feitas com colaboradores na casa dos vinte anos ou dos sessenta. De certa forma há um sentido de intemporalidade que é muito específica. Esta é uma música que não tem nada a ver com a América, com o jazz, os blues, o rock… Veio da Europa. Veio da Alemanha e da França… E colhe heranças da música clássica, da tradição de peças instrumentais longas, que não estão necessariamente formatadas segundo a ideia de canção. Mesmo se mais tarde o electropop e alguns idiomas americanos tenham levado a música electrónica para mais perto dos formatos da pop.
Qual é o papel na tecnologia na história musical de um artista?
É a tecnologia quem cria a possibilidade de novos géneros e não o contrário. É o instrumento quem gera o estilo. Foi depois de inventada a imprensa que se criou uma nova escrita. O romance é disso consequência… Foi depois de descoberto um certo pigmento que Miguel Ângelo pode pintar algo diferente… É pelo facto de ter aparecido o computador que existe hoje uma nova geração de criadores que se expressam pelo Photoshop, pelo Pro-tools. Foi por causa dos instrumentos analógicos que nasceu a música eletrónica. Ao regressar, recentemente a Oxygène dei conta que esses instrumentos que então usei foram únicos. Únicos como o foram os violinos Stradivarius, na música clássica. Ou uma Fender Stratocaster para o rock. O sonho de um violinista, hoje, é tocar com um Stradivarius. Apesar de toda a tecnologia que entretanto apareceu. É como, na história de vida de cada um de nós, o acumular de um savoir faire, um talento, que é insubstituível. Os instrumentos analógicos de há algumas décadas permitiram a criação da música electrónica. Hoje as eletrónicas actuais geram outras coisas. Mas as fundações da música eletrónica estão naqueles instrumentos. E muitas coisas mudaram por causa do advento do digital, nos anos 80. Esqueceram-se então esses velhos instrumentos. Esqueceu-se o seu calor, riqueza, sensualidade… Os transístores e as lâmpadas…
Mudou a nossa noção de futuro?
Havia uma visão poética do futuro. O milénio estava à nossa frente. Hoje está já atrás… E ou temos uma visão retro-futurista do futuro, ou uma outra, mais sombria… As visões actuais do futuro passam por um planeta que não está nada bem… No passado, o futuro passava pela conquista do espaço, era uma coisa mais emocional. Falava-se da invenção dos helicópteros e da possível ida do homem à Lua. Pareciam coisas irracionais… Hoje vivemos no domínio do racional. Os automóveis são todos parecidos, as tecnologias são semelhantes. No passado havia uma loucura que permitia a criação de instrumentos bizarros como o mellotron. Que dava aquele som trémulo que lembrava a velha música dos primeiros dias do cinema sonoro. Essa poesia pode ser recriada, é certo… Há plug-ins que podemos juntar aos nossos computadores. Mas é como se usássemos apenas as fachadas de edifícios. A música electrónica atual é, por isso, órfã das suas raízes. Imitamos a fachada dos instrumentos. São fantasmas de coisas que já não existem.
Esta entrevista resulta da colagem de duas que fiz com Jean Michel Jarre. Uma delas decorreu em Lisboa, em 2007, e dessa conversa usei parte para um artigo que então publiquei no DN. Em 2015 conversámos numa outra ocasião (desta vez por telefone) assinalando então a edição do primeiro volume do díptico Electronica. Houve mais conversas… Mas entre estas duas creio que ficou fixada a história de um importante pioneiro da música eletrónica, cujo sucesso mainstream fez comichão a muita gente… A sua influência em várias gerações de músicos (que o respeitam) ajudou a mudar a perceção da sua contribuição para a história da música.