Dez discos que definiram o meu gosto – Nuno Costa Santos

Cada disco pode contar várias histórias. E quem quiser mais do que ficar olhar para as capas pode agora ler aqui… Dez discos… e as respetivas histórias. E assim nasce o gosto de cada um. E hoje quem partilha aqui os seus dez discos e as respetivas memórias é o Nuno Costa Santos. É uma narrativa com dez discos… E um título…

Dez Razões para um Assassinato

Além do Nuno Galopim, convocaram-me para o jogo de escolher dez discos do meu cânone privado o Pedro Miguel Silva, o Paulo de Sousa, a Patrícia Santos, o João Pedro Vaz de Medeiros e o Bruno Baldaia. Agradeço o convite a todos. Levei tempo a responder porque isto, sabemos, é tarefa tortuosa, quase mortal. Acabou por chegar por instinto e não pela ideia, verdadeira, de que sou consumidor de muito diversos estilos musicais. Desculpem envergonhar-vos.

Ora bem. Não vou dizer que comecei a ouvir Bauhaus aos oito anos. E Laurie Anderson aos nove. Não vou dizer que não ouvi e me comovi com o “Against All Odds” e o “Alone”, que não arrisquei air guitar ao som de “Leavin’ On a Prayer” e de “Pour Some Sugar On Me”, que não dancei de olhos fechados, possivelmente debaixo de uma bola de espelhos e do strobe light, com “Footlose”, “Love Changes Everything” e “Forever Young”. Não vou dizer até que não tive, na colecção doméstica, o single “Tarzan Boy” e não dei uns saltos ao som de Bros como estes faziam no teledisco de “When Will I Be Famous?” ou que não arrisquei novos passos de dança ao som de “I Owe You Nothing” (não, não foi ao som de “I Don´t Owe You Nothing”, dos Smiths).

Ah, é verdade. Não vou dizer que não ouvi os hits do filme “Break’in”. Não vou dizer que não arrisquei o meu breakdance ao som de “There’s No Stopping Us” ou do “Woodpeckers from Space”. Não vou dizer que não abanei a anca com “Power of Love”, de Huey Lewis & The News. Não vou renegar a arca do meu passado, não tão citável como a do Pessoa. Não vou.

Tudo corria bem, com músicas de cidadão comum e confiável, daqueles que vão almoçar de fato cinza com os colegas da empresa, até que apareceram os Cure, de “Kiss Me Kiss Me Kiss Me”. Dois amigos do liceu ouviam o disco. Simples: comecei por odiá-lo e depois passei a amá-lo. Desconheço o dispositivo psicológico que me levou pelos maus caminhos da sombra indie. Mas alguma coisa se passou e não foi bonito de se ver. Ia para além dos singles “Just Like Heaven” ou “How Can’t I Be You”. Lembro-me de ouvir “One More Time” e “A Thousand Hours” como se escutasse hinos sobre uma minha súbita condição existencialista. Pobre de mim e da minha família, sujeita a blasers e outras negras vestimentas. E um penteado assim meio estranho. Não, não me vestia como aquilo que em Lisboa – e noutras partes do país – se classificava como “vanguarda”. Vivia nos Açores e nos Açores não havia tribos. Havia gajos que se vestiam de uma forma que pretendia, à sua maneira, rimar como aquilo que a música os fazia sentir. Eu e o meu amigo Carlos Branco éramos dois deles. “Kiss Me Kiss Me Kiss Me”, ainda antes de “Disintegration”, no qual se inclui o meu tema preferido da banda, “The Same Deep Water As You”. O breakdance manteve-se mas agora em câmara lenta e melancólica.

O aprofundamento da decadência veio com a audição de uma cassete que incluía gente pouco recomendável como os Xmal Deutschland, os Clan of Xymox e os Go-Betweens. Estes últimos, betinhos ao pé da gangalhada dos dois primeiros grupos, ficaram comigo para sempre. “16 Lovers Lane” é um disco que me marcou antes da escavação dos discos anteriores da banda. Podia dizer o que se costuma dizer deste grupo australiano, de Brisbane: que é subvalorizado. Na verdade é. O documentário “Right Here” fala de tudo aquilo que podia ter corrido bem e não correu. Mas o que é belo é eterno e as letras e as músicas da banda de Robert Forster e Grant McLennan são da melhor poesia musical que já se fez em toda a parte. Tema preferido do álbum: “Quiet Heart”. Não: “Love is a Sign”. Amanhã acendo mais um cigarro.

Um “Indie Top” (o “Hit Parade” da alegada intelectualidade da música), comprado pouco tempo depois, foi importante no desvario. Um menu para a perdição. Trazia belas malhas como “Deanna”, do moço Nick Cave e da sua rapaziada, “Kansas”, dos Wolfgang Press, “Freak Scene”, dos Dinosaur Jr., “Ana Ng”, dos They Might Be Giants, “Joe”, dos Inspiral Carpets, “Mercy Seat”, dos Ultra Vivid Scene, “Dizzy”, das Throwing Muses, “Baby You’re Just You”, dos Pastels. Já que se fala em pastéis, é de referir a importância maior que uns primos deles tiveram na minha vida liceal-musical: os My Bloody Valentine, com “Ecstasy and Wine”, a compilação que junta um mini álbum e um single (“Isn’t Anything” e o canónico “Loveless” não foram tão importantes para o meu gosto quanto aquele disco anterior). Na verdade não há grande diferença entre “Never Say Goodbye”, dos My Bloody, e “Everytime You Go Away”, de Paul Young. Complementam-se nas temáticas, no que querem dizer. Se houvesse uma nuvem de noise em cima desta última canção o Paul poderia ter sido contratado por Allan McGee para a sua Creation. E foi mesmo a barulhada por cima das melodias campestres dos My Bloody Valentine que fizeram um grande amigo supor haver um problema na gravação das músicas. Não, era mesmo assim. E era assim o meu cérebro adolescente. Uma mistura entre melodia e ruído – sim, o meu e o de todos os adolescentes.

Ficava-me melhor dizer que me marcou mais “Substance” dos Joy Division do que “Substance”, dos New Order. Mas essa não é a verdade e os meus pais ensinaram-me que mentir é feio. Ouvi bastante o primeiro – arrumado numa cassete de capa vermelha – mas consumi de forma mais viva mais o segundo. Porquê? Porque era material sonoro perfeito para ofertar, no embalo de uma voz tão desafinada como a minha, cores primaveris ao dia-a-dia. E um embalo dançante que o indie raramente trazia. “Everything’s Gone Green”, “Temptation” e “Bizarre Love Triangle” fizeram e ainda fazem dançar. Muitos anos mais tarde escrevi no facebook que preferia os New Order aos Joy Division porque haviam conseguido erguer o caparro depois das cinzas de um suicídio. Era uma provocação e não deu em assassinato. Aqui estou eu, para prosseguir com a partilha breve do mais significativo da minha tralha musical. Hoje.

Tanta insanidade musical só podia acabar num álbum intitulado “The Comforts of Madness”. O meu amigo Zé Bernardo, com o seu sensível olho de lince, disse-me uma vez: tu és os Pale Saints. É de pensar naquilo que diz um bom e velho amigo pelo qual temos enormíssima consideração. “The Comforts of Madness” é um álbum de pára-arranca com vozes angelicais (angelicalms também) e guitarradas cruzadas. “Sight Of You”, que comecei por ouvir em casa do Pedro Pascoal, guru musical de toda uma geração de rapaziada micaelense, traz letra com a seguinte carpintaria e os seguintes materiais: “The sight of you/Makes me feel blue/ Makes me feel blue/The things you said/The things you said/ Make me feel bad/ My heart is sad”. Tristeza, crescimento, desilusão e beleza empacotados e produzidos no grafismo e nos estúdios exigentes da 4AD.

Os Pixies são mais importantes do que os Nirvana. Agora que fiquei com três leitores posso prosseguir o texto. Podia aqui trazer “Nevermind” dos Nirvana (que conheci numa compilação de tributo aos Velvet Underground) mas a foto da rapaziada de Boston está, neste momento, mais à vista do que a de Seattle. Ouvir “Surfer Rosa” ainda é uma experiência. Claro que na altura “Where is My Mind” era o hino perfeito para alguém que, como tantos da sua idade, não sabia onde havia arrumado o juízo. O desarrumo do álbum é perfeito. Black Francis é o génio ao qual falta o desespero suficiente para se tornar um mito. “Doolittle” também ficou (e ainda hoje ouço de vez em quando “Hey”). Menos “Bossanova”, mais dado aos ambientes de surf. A surfada, no meu caso, foi feita em terra e as ondas foram, e ainda são, de certa forma, domadas ao som de “Vamos”.

A história começou com “Elephant Stone”, apanhada numa má transmissão, via parabólica, de um programa chamado, penso, Rock In The UK. Fiquei capturado por uma música feita por uns rapazes líricos e verdejantes (um dia o meu filho Luís, nos seus dez anos, terá dito, ao ouvir “Made of Stone”, que era uma música triste e alegre ao mesmo tempo ou nem uma coisa nem outra). A estética psicadélica-pollockiana no vestuário e na guitarra também impressionou. Depois veio o álbum, comprado na Bimotor. Transporta, além desta última cançoneta, um alinhamento de músicas que na altura eu e o meu grupo de amigos não sabíamos que se tornaria num arranjo floral clássico e obrigatório. A gente saltava ao som de “She Bangs the Drums”, encerrava a pestana com um sorriso ao som de “Waterfall” e esperava pelo fim da longuíssima “I Am the Ressurection” para ter um transe com a ressureição da guitarra de John Squire. Ah, a nossa dança oscilava entre o gingar de Ian Brown e os movimentos repetitivos, para a frente e para a trás, de Bez. Podia nomear aqui “Bummed”, dos Happy Mondays, ou “Life”, dos Inspiral Carpets, mas um exercício de escolha destes foi feito para o cidadão sofrer. E o cidadão sofre.

Podemos aprofundar a tristeza? Podemos. Com os Slowdive do primeiro álbum, “Just For a Day”, no qual se pode encontrar um tema chamado “Sadman”. “Catch the Breeze” ia bem com a brisa açoriana em tempo invernoso. E o resto do álbum também. “Primal” talvez seja a escolha para melhor tema, se uma pessoa for encostada à parede pela EMEL indie. O álbum seguinte, “Souvlaki”, traz talvez o melhor tema da banda, “Alison”, com um vídeo a lembrar, com uma nostalgia que não pesa, todas as festas que tivemos na adolescência. Comentário internético: “The video is full of old friends I’ve never met, and the music takes me to places that have never existed”. Um dado biográfico e uma sugestão: os Slowdive, quando apareceram, foram abafados pela boa farra britpop e, há poucos anos, retratados num belíssimo documentário da Pitchfork.

Desde os Red House Painters que Mark Kozelek se tornou num dos meus melhores companheiros. Ouvi-me, ouvi-o – nos seus desabafos de “Katy Song”, “Summer Dress” e “Have You Forgotten”. Só estivemos juntos uma vez. Foi na Fnac do Chiado. Ouvi-o tocar, falei-lhe das ilhas de onde vim, pedi-lhe – apesar de não ser muito desse tipo de gesto – para assinar um CD e fui-me embora. Voltei a vê-lo, agora de longe, em Torres Vedras e, ao saber que tinha a possibilidade de estar num jantar com ele, afastei essa possibilidade. Há comparsas com quem não devemos estar. Mark, anjo com mau feitio, capaz das maiores ternuras e das piores acrimónias, é um deles. Red House Painters, Sun Kil Moon, Kozelek a solo. Tenho acompanhado o que tem feito mesmo que os meus outros amigos digam que ele já não brilha como nos tempos dos Painters. Não quero saber.

Jacques Brel. Brel foi-me chegando aos poucos por via paterna registado em bobines e cartuchos (como Chico Buarque e outros que tais). Mas depois entrou-me no sangue quando ouvi uma compilação que incluía temas essenciais como “Les Bonbons”, “Madeleine” e “Valse a Mille Temps”. O personagem tornou-se uma espécie de obsessão a partir do momento em que resolvi, depois de ouvir uma boa história passada com ele nos Açores, trabalhar um espectáculo sobre a sua vida e obra. Tenho em exposição na estante o último álbum, editado pouco tempo antes de morrer, numa altura em que já habitava as Ilhas Marquesas. Hoje, ao vê-lo actuar, lembro-me de Ian Curtis. Se pensarem, faz bastante sentido. Pouca gente suou tanto em palco como aqueles dois.

Adenda batoteira e à má fila. Pergunto depois de desenhar esta lista: onde é que ficam Wim Mertens, com “Maximizing the Audience”, Meredith Monk, com “Book of Days”, o álbum do cavalo dos Einstürzende Neubauten, o “Stabat Mater” do Pergolesi, “L’Eau Rouge”, dos Young Gods, os Chameleons, os Primal Scream, o “3 Feet High and Rising”, os Pop Dell’ Arte, os Mão Morta, os Sétima Legião, os GNR, os Jesus and The Mary Chain, os Jesus Jones, os Fall, os Ned’s Atomic Dustbin (marcante o “God Fodder”), os Ride (ah, os Ride), o Miles Davis, o “Khöln Concert”, os Zoviet France, os Shamen, os Inner City e a sua “Good Life”, o melhor Prince, trazido para a bagageira sonora pelos irmãos Albergaria? E tantas bandas e bandinhas do movimento madchesteriano, aparentemente menores mas decisivas para as festas que fizemos junto à Lagoa das Furnas?

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