Os seis melhores álbuns internacionais dos seis primeiros meses de 2020

Seis álbuns internacionais que se destacaram entre a produção discográfica editada nos primeiros seis meses de 2020. Esta é uma escolha pessoal, como de resto é hábito nestas coisas das listas de discos… Texto: Nuno Galopim

Entramos hoje no segundo semestre de 2020… Nem vamos falar do ano que estamos a viver nem de quão diferente está a ser de todos os que antes conhecemos e bem distinto do que esperávamos quando contávamos as passas a 31 de dezembro. Mas há coisas que não mudam. E uma delas tem a ver com os discos. Mais ou menos próximos das datas inicialmente previstas, foram surgindo. E mesmo que alguns tenham afastado eventuais edições em suporte físico do momento do lançamento digital, a música continuou a fluir.

Iniciamos hoje um panorama através do que de melhor (e aqui o gosto é quem mais fala, naturalmente) fui escutando ao longo destes seis primeiros meses de 2020. Como critério de base para a seleção escolhi discos sobre os quais fui falando aqui no GiRA DiSCOS (e logo aí há um primeiro crivo de gosto a funcionar)… Discos eventualmente lançados neste semestre mas ainda não abordados aqui (como o caso do álbum de Owen Pallett) ficam para a próxima colheita.

Começamos pelas edições internacionais. Todos estes discos conheceram edição física, se bem que o de Bob Dylan só vá ter este mês o seu lançamento em vinil (para já temos o CD). Entre todos note-se a diversidade de origens. Há música que chega do México (mas que é assinada por uma natural da Guatemala), do Reino Unido, da Alemanha e dos Estados Unidos. Aqui fica então a seleção, apresentada por ordem alfabética dos artistas.

Bob Dylan “Rough and Rowdy Ways”

Apesar da multidão de acontecimentos que deram que falar nos dias de confinamento mais “apertado”, com a saúde pública a chamar naturalmente as atenções, houve um episódio exterior a esse universo que não passou despercebido. Tinha por título Murder Most Fowl e, numa canção de 17 minutos diferente de tudo o que nos tinha mostrado atá aqui, Bob Dylan usava a evocação do assassinato de John F. Kennedy para nos falar, acima de tudo, da América (e do mundo) do presente. Mais do que uma canção, era quase como uma encenação de um texto. Como uma peça de teatro… Entre o falado e o cantado, com a música presente, mas ciente de que fazia ali a cenografia necessária para que as palavras pudessem ressoar… Era a primeira nova canção original que Dylan nos dava a escutar desde que, em 2016, fora (justamente) agraciado com o Prémio Nobel da Literatura. Era também a primeira canção de sua autoria que nos dava a ouvir desde que em 2012 editara o álbum Tempest já que, desde então, a sua discografia juntou três (magníficos) álbuns com versões de canções do songbook americano e seis novos volumes da Bootleg Series. Murder Most Fowl anunciava um novo álbum. E poucos discos ao longo dos tempos terão conhecido um aperitivo tão nutritivo e promissor quanto este.

         Seguiu-se a revelação de I Contain Multitudes, uma balada na qual Dylan cruza referências a nomes como Anne Frank, os Rolling Stones ou… Indiana Jones. A soma dos universos do mundo real e da ficção juntam-se assim para criar uma visão comum do todo que é objeto da observação (afinal um recurso habitual na escrita de Dylan). False Prophet, o terceiro avanço do álbum, revelava depois uma incursão mais “clássica” pelos blues, sendo a música baseada numa gravação de 1954 de Billy ‘The Kid’ Edwards (editada então pela mítica Sun Records). E com três canções, todas diferentes entre si, mas brilhantes exemplos de composição e escrita, partimos para o álbum que, agora, confirma não apenas estarmos perante um disco maior na obra de Dylan mas também um daqueles raros momentos que, mais do que apenas uma coleção de canções, traduzem o seu tempo e o seu lugar com as características de um grande acontecimento cultural. A história faz-se da soma de retratos como este. E Rough and Rowdy Ways não só é um importante retrato para desenhar a história de Dylan mas também a do nosso tempo.

         Key West (Philosopher’s Pirate), que abre com um acordeão – que evoca os dias e climas das Basement Tapes – é como uma road song que segue ao logo da Road 1 (que liga o Maine à Flórida) e deixa um agradecimento a Allen Ginsberg, Gregory Corso e Jack Kerouac. Tal como Dylan eles fixaram pelas palavras as imagens e ideias do seu tempo. São figuras que se juntam aqui às acima evocadas a propósito de I Contain Multitudes, cujo título provém de um verso de um poema de Walt Whitman. E que engrossam a multidão de referências que vincam diversidade a referir tanto Beethoven como Jimmy Reed ou, m Mother of Muses, lembram militares que ajudaram a garantir a vitória aliada sobre as forças do eixo e que, por isso, abriram, como diz Dylan, caminho a um mundo que pode escutar Elvis e, depois, Martin Luther King. Estas referências e ligações, organizadas num conjunto de dez canções de escrita e composição irrepreensíveis, arrumam um olhar de Dylan sobre o mundo em que vivemos no momento em que estamos. É uma escrita diferente da que sugeria leituras mais nítidas (e até mesmo pragmáticas) como as que cantava quando nos dizia que os tempos estavam a mudar e a resposta era soprada pelo vento… Mas nem por isso menos pessoal e política.

         Ao contrário do que Murder Most Fowl poderia sugerir, o alinhamento de Rough and Rowdy Ways revela musicalmente um Dylan firme na identidade de uma obra construída da assimilação de alicerces de uma América profunda e antiga (não é por acaso que a canção que serviu de primeiro avanço do álbum esteja agora colocada no disco 2 da edição em CD e que, na edição em vinil, vá ocupar a face 4 do duplo álbum). Este não é um disco de rutura ou reinvenção, mas antes a sólida afirmação de uma identidade que há muito está definida. Murder Most Fowl é, musicalmente, uma peça única. Mas é a escrita que a junta às demais que fazem de Rough and Rowdy Ways um disco que traduz o que apenas uma carreira com o peso de uma vida pode (e sabe) contar. Este é o Dylan de hoje. Com quase 60 anos de discos e palavras. E com a capacidade para juntar a toda uma obra uma peça nova (e maior) que, sem querer ser uma síntese ou um epílogo, carrega aquele raro peso profundo de um modo de observar, relatar e comentar que só os anos e o domínio da escrita sabem alimentar.

“Rough and Rowdy Ways”, de Bob Dylan, está disponível em 2CD ou nas plataformas digitais numa edição da Sony Music. O lançamento em 2LP está previsto para 17 de julho.

Einstürzende Neubauten “Alles im Allen”

Há 40 anos Berlim era uma cidade diferente. Rodeada por um muro, afastada, distante, acolheu culturas e ideias diferentes, que ali floresciam com outro sentido de liberdade. Magoada por décadas de uma história que ali cravejara feridas, dos anos do nazismo e da destruição no final da guerra ao tempos de divisão e separação que depois conheceu. Ao contrário de cidades como Colónia ou Dusseldorf, que tinham vivido décadas de outra prosperidade económica e tinham recebido os focos das atenções do mundo da música nos anos 70, Berlim Ocidental não deixaram nunca de ser palco para figuras e visões. Afinal foi ali que nasceram os Tangerine Dream. E no final dos anos 70 aquela foi a casa de David Bowie e Iggy Pop…

Em 1980 da cultura underground de Berlim Ocidental emergiu uma das mais importantes forças de criação e ousadia que a música ali criada viu nascer. Aliava um sentido exploratório a marcas de uma cultura industrial, de modo contudo bem distinto do que animara alguns pioneiros da música eletrónica. O interesse pela exploração de sons gerados por objetos (sobretudo metais e ferramentas), pela sua percussão, na verdade, podia ter até ligações mais próximas com alicerces da música concreta. Mas o contexto (cultural, social, até mesmo político) era outro. Uma tensão urbana contemporânea passava por ali. O próprio nome do grupo, que em português poderia ser traduzido como edifícios em colapso, dava conta de uma força com potencial de pode construir algo novo depois da destruição. Afinal, nada mais berlinense… E num quadro distinto, com um som diferente, os Einsturzende Neubauten entram em cena e conquistam um lugar num panorama musical europeu sempre em mutação. Os anos passaram… Blixa Bargeld, um dos fundadores do grupo e a sua voz e grande força criativa, dividiu atenções, anos a fio, entre os Einsturzende Neubauten e Nick Cave, tendo integrado os Bad Seeds de 1983 a 2003. Desde então o grupo multiplicou-se em projetos. Aos novos discos e estrada juntou uma série de lançamentos de música mais experimental. Apresentou uma obra destinada a assinalar o centenário da eclosão da I Guerra Mundial (que fixou depois no álbum “Lament”). Mas apesar da atividade, sobretudo intensa na estrada por ocasião de uma digressão que a partir de 2015 assinalou os 35 anos de atividade, havia um silêncio a ganhar forma. Alles in Allem, agora, resolve o aparente vazio, juntando à já vasta discografia dos Einsturzende Neubauten um dos seus melhores discos. E um daqueles que, tal como há poucos dias referia em relação aos Pop Dell’Arte, não podia ter nascido antes. Porque este é um disco que só pode ganhar estas formas depois de todo um percurso vivido.

O disco apresenta dez canções pelas quais passam marcas de vivências berlinenses. Umas cruzam-se com as histórias de vida dos músicos. Outras com lugares ou momentos que marcaram a cidade. Em Grazer Damm o próprio Blixa lembra cenas da sua infância no bairro de Schönberg. E em Am Landwehrkanal evoca a morte de Rosa Luxemburgo em Berlim, em 1919. O disco molda essa dimensão narrativa num ciclo de dez canções que pontualmente vibram marcas da genética “industrial” dos Einsturzende Neubauten, mas arrumadas em canções de arestas aprumadas, seja nos instantes dominados por batidas insistentes (como em Ten Grand Goldie que abre o alinhamento) ou em episódios cenicamente mais elaborados (Zivillizatorisches Missgeschick) e mais ainda em baladas orquestrais como TaschenGrazer Damm ou Templehof, que parecem estabelecer possíveis rotas paralelas de afinidade com buscas formais que o velho parceiro Nick Cave tem desenvolvido nos tempos mais recentes.

Alles in Allem não é um disco de cedência ou de rendição. Pelo contrário. É a natural expressão de uma história com 40 anos vividos sob indepenência, liberdade e fulgor autoral. As canções são mais acessíveis (algo que era já evidente em Alles Wieder Oten, de 2007). Mas não cedem um milímetro na afirmação de uma identidade. Ainda política, social e cultural bem demarcada. Ninguém mais podia fazer este disco. E só aos 40 anos de vida conjunta os Einsturzende Neubauten o poderiam ter criado. Todo um caminho para chegar aqui. E em mãos ficamos com um disco que herda toda uma história que cruza a de quem faz a música com a do lugar onde ela nasce. Um dos grandes discos de 2020, podem crer.

“Alles in Allem” dos Einsturzende Neubauten, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais, numa edição da Potomak

Mabe Fratti “Pies Sobre La Tierra”

Juntar violoncelo com canto e música eletrónica não é necessariamente uma ideia inédita. E imediatamente podemos dar por nós a pensar em Arthur Russell como um exemplo de perfeita coexistência entre essas três “vozes”… Mabe Fratti pode partilhar com Arthur Russell essas três frentes de exploração para a música. Mas na verdade o que nos propõe esta compositora natural da Guatemala e atualmente a viver na Cidade do México é algo completamente diferente. Ambos partilham, contudo, a vontade de expressar pela música uma pulsão autoral que, de certa forma, os relaciona (a ambos) com os universos nos quais a sua música ganha forma. Em Arthur Russell (1951-1992) cruzavam-se as visões de um explorador com ecos das paisagens ao seu redor (as de uma Nova Iorque que descobria novas músicas nos anos 70 e 80 e, antes mesmo, as marcas das vivências rurais da sua infância). E, Mabe Fratti reconhecemos sobretudo o sentido de liberdade (também com gosto exploratório) de alguém que dialoga com os universos das artes que surgem na comunidade ao seu redor. E pela sua música sentem-se afinidades com os espaços e linguagens das artes visuais e performativas, traduzindo afinal os terrenos de labor e colaboração que ela mesmo tem vindo a desenvolver na cidade que escolheu para ser a sua casa.

Em 2018, quando começou a fixar a sua música em gravações publicadas (inicialmente apenas em suporte digital), editou um EP ao qual chamou Aprendiendo a Hablar. E escutando as gravações que separam esse disco de Pies Sobre La Tierra, que agora assinala a sua estreia no formato de álbum, encontramos de facto uma progressão no trabalho de moldagem da música no sentido de criar um espaço próprio onde não só se afirma uma identidade autoral interessada na criação de soundscapes, texturas, atmosferas, desenhando espaços onde se diluem depois as fronteiras com os espaços da canção. A caminhada onírica que Mabe Fratti nos sugere no alinhamento de Pies Sobre La Tierra tem o sabor de um ciclo narrativo. As marcas de fisicalidade carnal da voz e do vibrar das cordas do violoncelo unem-se aos sons mais difusos lançados pelas eletrónicas. As canções emergem talvez num éter, mas olham de perto o chão. Até que o pisam. E a capa, que mostra um jardim verdejante, mas vazio de gente, parece falar para os nossos dias…

Pies Sobre La Tierra é uma experiência de sedutora e envolvente placidez que podemos juntar a propostas como as que Murcof sugeriu em Martes, Ambrose Field em Being Dufay ou Julianna Barcwick em The Magic Place são discípulos, com outras ferramentas, das visões que em tempos uma Virginia Astley nos lançava ao contemplar os seus jardins em forma de sons… Apesar de circular no ar e da cumplicidade marcante das eletrónicas, Mabe Fratti tem de facto os pés nesta (nossa) Terra. E este disco é uma das experiências mais belas que o ano já nos deu a escutar (ainda por cima, confinados, podemos sonhar aqui com outra imensidão de paisagens)…

Mabe Frati “Pies Sobre La Tierra” está disponível em LP e está disponível nas plataformas digitais numa edição da Unheard of Hope

Nyx Nótt “Aux Pieds de la Nuit”

Num primeiro contacto o nome poderá não dizer quase nada a ninguém. Mas se acrescentarmos que Nyx Nótt não é senão um projeto a solo de Aidan Moffat (dos Arab Strap), a coisa pelo menos perde um sentido de aparente anonimato… Mesmo assim, não é pelo historial de discos, tanto dos Arab Strap, como de Moffat a solo, que chegamos aos espaços abordados em Aux Pieds de La Nuit… E de resto basta passarmos uma vez pelo alinhamento deste (magnífico) álbum para compreender porque, durante algum tempo, o seu autor ponderou a eventualidade de não revelar quem estaria, de facto, por detrás do nome Nyx Nótt. Porque, como diriam os velhos Monty Python… e agora para algo completamente diferente. E, acrescento eu, significativamente mais cativante.

O disco foi nascendo em noites longas em casa do músico. Aidan fechava-se no seu estúdio quando toda a família já dormia. Confessa-se um noctívago, de sono difícil, e as longas horas de escuridão aqui acolheram um habitante que as soube celebrar num conjunto de temas instrumentais aos quais chamou Aux Pieds de La Nuit (sim, o título em francês teria ajudado a criar a ilusão de que se tratava de um novo músico, algures a viver no outro lado do Canal da Mancha). Para vincar mais a caracterização da ideia que aqui se apresenta vale a pena sublinhar que Nyx é uma divindade noturna grega e Nótt desempenha um papel algo semelhante na mitologia nórdica.

Samples, sons guardados em sessões de estúdio (juntando pontualmente cordas ou metais), efeitos e sons de objetos registados na ocasião, um pensamento sobre percussão e o espaço ao seu redor, juntaram-se numa música ambiental, claramente noturna, mas evidentemente cativada pelos sabores de um jazz cinematograficamente pincelado sobre as telas lançadas pelas eletrónicas, percussão e colagens. Tal como Nestor’s Saga (The Tale Of The Ancient), do álbum de 1981 de John Surman (The Amazing Adventures Of Simon Simon) sugeria uma maresia tão reconfortante como intrigante num encontro entre o jazz e a música eletrónica, também aqui Aidan, perdão, Nyx Nótt, faz de Aux Pieds de La Nuituma celebração sensorialmente estimulante e até cinematograficamente apetecível, da noite enquanto espaço aberto à descoberta, à surpresa, à vertigem do desconhecido…. mas no conforto seguro de quem a contempla com prazer, desperto e sem medo. Em tempo de confinamento, semi-confinamento ou a caminho de um desconfinamento, esta noite (de ouvir) sugere alguma paz que a luz do dia ainda não nos dá.

“Aux Pieds de La Nuit”, de Nyx Nótt, está disponível em CD e nas plataformas de streaming numa edição da Melodic. Uma segunda prensagem em LP (vinil transparente), acompanhada por um single de bónus, e que é limitada a 300 exemplares, está disponível via Bandcamp.

Pantha du Prince “Conference of Trees”

Há nomes aos quais não resisto sempre que sei que têm um novo disco a chegar. E Henrik Weber é um deles (e até hoje nunca desiludiu, antes pelo contrário). Mencionando o nome, tal como acabo de o fazer pode não fazer soar nada em particular a um primeiro contacto… Mas se acrescentar que, em disco (e nos palcos), o conhecemos sobretudo sob o alter ego Pantha du Prince, então o cenário muda de figura. Dos ensaios pelo tecno minimal que registou em Diamond Daze (2004) ou no soberbo This Bliss (2007) à procura de ecos de um lugar e da sua narrativa em Black Noise (2010), juntando depois o progressivo interesse pelo trabalho de colaboração com outros músicos (que o juntou já a Panda Bear ou ao coletivo The Bell Laboratory) e que gerou discos mais recentes como Elements of Light (2010) ou The Triad (2016), o percurso de Henrik Weber tem-no transportou-o de um patamar original de existência mais solitária (tão característico em quem trabalha nos espaços da música eletrónica) a um terreno de labor colaborativo que, agora em Conference of Trees, conhece um novo episódio ainda maior e mais arrebatador.

No ponto de partida está uma relação com um espaço. Neste caso a floresta. Um espaço de tranquilidade, de redução dos níveis de agitação da vida social e urbana até um nível de entendimento orgânico com os que ali habitam. Um espaço inspirador. Que pode ser motivo para abrir os sentidos e saborear o que está ali em volta. Desde criança Henrik pensava nas florestas como lugares habitados por seres imaginários. E hoje reconhece que, mais dia menos, dia, o seu destino seria o de um dia morar numa floresta. E assim poder perder-se, para se reencontrar, num lugar onde as leis do mundo natural falam mais alto…

Quando editou Black Noise falei com ele sobre como a música pode traduzir a experiência de um lugar. A capa do disco mostrava uma pintura com uma paisagem alemã do século XIX que corresponde à memória remota de um local semelhante a outro, do qual surgem fotografias no inlay do disco. As fotografias, por sua vez, correspondem a memórias de uma montanha, na Suíça, onde gravou o disco, lugar que, há mais de cem anos (nos tempos da pintura da capa), assistiu a um desabamento que levou sinais de destruição a uma paisagem que, entretanto, a natureza recompôs. “Hoje, mais de 100 anos depois do desabamento a montanha é linda. Nem dá para imaginar… A natureza reconquista sempre. É um pouco assim que a música deve funcionar… Cresce por si, tem uma face orgânica que desenvolve em nós algo novo, abre novas perspetivas”, contou-me então.

Sem a carga de devastação da história por detrás das imagens e da música de Black Noise, o novo Conference of Trees não deixa de partilhar com esse mesmo álbum um mesmo sentido de encantamento pela relação não apenas entre o espaço em volta e a música que nele pode emergir, mas igualmente o modo como a composição pode traduzir esse sentido de renascimento e de abertura de novos horizontes e perspetivas. O álbum “florestal” que Henrik Weber agora apresenta como Pantha du Prince partiu da soma de novos timbres à sua música, nomeadamente madeiras, pedras e sinos russos que recentemente descobriu. Na base de tudo está a matriz eletrónica que define o solo dos acontecimentos. Mas depois juntam-se ainda marimbas, vibrafone, sinos, violoncelo… Se o ponto de partida da composição foi um ato solitário (numa casa no meio da floresta), já a gravação chamou uma família de outros músicos para, tal como numa floresta, criar uma paisagem que respira no fim como um organismo comum.

O alinhamento de Conference of Trees parte de uma primeira sequência de faixas dominadas por ambientes de maior placidez ambiental. E, aos poucos, a pulsação viva dos corpos ganha expressão, emergindo ritmos e melodias, um pouco como se as árvores começassem não só a falar mas até mesmo a dançar. A experiência de audição sugere um percurso de imersão gradual em paisagens desenhadas por sons, num caminho com sentido definido e uma rota quase narrativa (na verdade mais cenográfica) desenhada pela evolução das faixas, umas após as outras. As imagens já criadas para acompanhar a música estabelecem, por sua vez, ligações evidentes a velhas memórias de seres imaginários que o músico lembra dos seus tempos de criança. O disco traduz sinais de evidente progressão tendo por base várias experiências anteriores. Mas, como a experiência conjunta, é talvez o mais envolvente de todos os discos até aqui apresentados como Pantha du Prince.

“Conference of Trees”, de Pantha du Prince, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais, numa edição da BMG.

Perfume Genius “Set My Heart on Fire Immediately”

Tudo começou há dez anos. Mike Hadreas, então com 26 anos, apresentava-se como Perfume Genius e revelava-se revelar num dos mais espantosos discos de alma solitária que tínhamos escutado nos últimos tempos. Num alinhamento conciso, feito de apenas dez curtas canções, como que a dizer que o pouco pode ser muito, Learning era um cartão de visita, mas também a expressão de uma alma magoada que assim contava ao mundo exterior as histórias do seu universo particular e do pequeno mundo (e figuras) ao seu redor. Nas fotos promocionais mostrava-se figura frágil, muitas vezes com um olho escurecido, como se tivesse sido esmurrado. Quatro anos depois, as imagens que acompanham o lançamento de Too Bright, o seu terceiro álbum, revelam a pose de quem, em vez de ser sovado, era agora aquele que dá os murros e aponta o dedo. Mais emocional do que fisicamente, entenda-se. A força ali era do olhar que provoca e enfrenta. Não que tenha conquistado todos os patamares na escala da segurança (sendo, contudo, um facto que editar discos, levar as canções ao palco e falar com muita gente pelo mundo fora terá ajudado), mas o homem que se apresentava nesse terceiro conjunto de canções ganhara fôlego para, depois de encarado o mundo, o passar a comentar e criticar. E confirmava em pleno que não só era Mike Hadreas um dos mais inspirados cantautores do nosso tempo, capaz de inscrever através da sua obra uma personalidade demarcada que dele faz uma voz única e distinta, mas revelava-se mais que nunca uma figura de referência, valendo a sua obra musical e visual como uma das mais importantes contribuições recentes para uma mais plural representação das sexualidades e da identidade de género através da arte. A cultura queer tinha ganho uma voz a ter em conta. Ao quarto álbum, No Shape (2017) deixou de ter as fragilidades e forças do músico como objeto, convidando-nos a, com ele, partirmos numa aventura de descoberta através de canções desafiantes, num alinhamento tão cativante como um bom livro. Mas, tal como sucedera em Put Your Bacn N2 It (o segundo álbum, editado em 2012), este quarto disco não nos encarava com o seu olhar. Todo este trilho para notarmos, para começar, a progressão desde o rosto vendado de 2010 e o olhar confiante, mas de perfil de Too Bright, com o rosto que, nos olha agora de frente. O rapaz magricelas de 2010 deu lugar a um corpo musculado. Se a imagem lança sugestões, então Set My Heart on Fire Imediatly pode, num primeiro contacto, sugerir que, ao quinto disco, a confiança é plena e o desejo de ir mais longe (chama-se ambição) é maior. Basta ouvir o disco para, depois, confirmar que assim é.

Set My Heart on Fire Imediatly é um manifesto de afirmação de uma voz criativa que há muito encontrou o seu caminho, já tateou formas e agora define um rumo que quer que o leve mais longe. Onde havia uma ingenuidade quase caseira nas canções do álbum de estreia, que pareciam registadas com um velho gravador pousado ao lado do piano, agora há a segurança não só de uma captação de som exemplar e de um magnífico trabalho de produção, mas também a presença (em estúdio) de músicos de estúdio de grande calibre como Matt Chamberlain, Jim Keltner ou Pino Palladino, que passaram já por discos de Bruce Springsteen, Eric Clapton ou Elton John. Mike Hadreas sabe porque os vai buscar. E as canções dão-lhe razão.

O álbum começa com uma arrepiante constatação de envelhecimento. As primeiras palavras dizem-nos: “half of my life is gone”. Note-se que não nos conta que chegou ao meio da vida. Mas que a primeira metade já desapareceu. A nuance pode ser discreta, mas o jogo de significados que compota é tremendo e ressoa no ouvinte de forma profunda. Fica desde logo claro que temos em mão mais uma viagem pessoal (afinal assim foi sempre o percurso criativo gravado como Perfume Genius). Mas onde procurava antes fôlego para confissões, agora há um músculo ginasticado a contar, a refletir, a observar. De resto, o título é uma ordem. E quem assim fala não vacila. Ginasticada é igualmente a capacidade em caminhar entre géneros, referências e possibilidades formais e tímbricas para a música, dos encontros entre ecos da country com eletricidade em Describe ao requinte e elegância ambiental de Jason, passando pelo apelo pop de On The Floor ou Set My Heart on Fire Imediatly (e lembrei-me dos Erasure de finais de 80 a escutar esta última canção). Onde Set My Heart on Fire Imediatly procurava abrir caminhos, o novo álbum agora mostra um domínio sobre cada exercício proposto, criando um alinhamento que encontra incrível sentido de união apesar de um apelo à diversidade mais presente do que nunca. Há aqui espaço e profundidade, que deixam fora de campo uma noção de música urbana (os telediscos, de resto, vincam bem claras as presenças de paisagens rurais). Perfume Genius está, mais do que nunca, no epicentro de uma expressão atual do cancioneiro americano mais profundo. E Set My Heart on Fire Immediatly, o seu melhor álbum até à data, mostra como aqui chegou sem cedências nem rendições. A sua personalidade ganhou corpo. E agora soa plenamente tão confiante que tem tudo para se poder fazer ouvir para lá dos universos mais atentos às culturas indie e queer que acompanharam atentamente dez anos de passos sempre seguros, informados, inteligentes e… sempre muito pessoais. E isso é o que faz um autor.

“Set My Heart on Fire Immediately”, de Perfume Genius, está disponível em LP e CD e também nas plataformas digitais numa edição da Matador.


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