Seis álbuns nascidos de arquivos (o que inclui reedições) que se destacaram entre a produção discográfica editada nos primeiros seis meses de 2020. Esta é uma escolha pessoal, como de resto é hábito nestas coisas das listas de discos… Textos e seleção: Nuno Galopim
Entrámos no segundo semestre de 2020… E iniciámos dia 1 um panorama através do que de melhor (e aqui o gosto é quem mais fala, naturalmente) fui escutando ao longo dos seis primeiros meses de 2020. Como critério de base para a seleção escolhi edições sobre os quais se foi falando aqui no GiRA DiSCOS. Lançamentos eventualmente apresentados neste semestre mas ainda não abordados aqui podem ficar para a próxima colheita.
Hoje é a vez dos discos que nasceram da gestão de arquivos. Aqui fica então a seleção, apresentada por ordem alfabética dos artistas.

David Bowie “ChangesNowBowie”
Estava inicialmente agendado para ter edição em LP e CD no Record Store Day, a 18 de abril, mas o lançamento em suportes físicos acabou foi adiado para a nova dada entretanto remarcada para esse dia que assinala e celebra a cultura das lojas de discos independentes, ou seja, a 20 de junho. Mesmo assim foi decidido que se mantinha, para o dia 18 de abril, o lançamento do alinhamento desse disco nas plataformas digitais de streaming. E assim hoje podemos acordar ao som de ChangesNowBowie. E com ele talvez o mais saboroso de todos os discos com gravações inéditas que o arquivo de Bowie nos deu a escutar depois do seu desaparecimento.
O álbum vai apresenta o registo de uma sessão que David Bowie gravou para a BBC para celebrar o seu 50º aniversário, a 8 de janeiro de 1997. No programa, além das canções, Bowie recebeu mensagens e perguntas de nomes como os de Scott Walker, Damon Albarn, Robert Smith ou Bono, entre outros. Nessa sessão Bowie contou em estúdio com as presenças de Gail Ann Dorsey (baixo, voz), Reeves Gabrels (guitarras) and Mark Plati (teclas e programações). Como método, até para estabelecer um contraste face ao concerto que depois assinalou a data no Madison Square Garden, com muitos convidados, Bowie e músicos revisitaram um lote de canções através de abordagens essencialmente acústicas.
A abordagem, assim como o próprio alinhamento, parecem sugerir um universo de referências e reflexões que poderão estar na origem da mudança de rumo que se verificaria depois entre Earthling (editado nesse mesmo 1997) e hours… (que chegaria dois anos depois e que não escondia ligações a memórias da alvorada dos anos 70). Entre os nove temas aqui reunidos estão dois recolhidos no alinhamento do álbum de 1970 (The Man Who Sold The World e The Superman) dois de Hunky Dory (Andy Warhol e Quicksand), um de Ziggy Stardust (Lady Stardust) e o tema-título de Aladdin Sane. Dessa fase data ainda um gosto por tocar ao vivo o clássico White Light/White Heat dos Velvet Undeground, que aqui também surge. Na verdade só não provém desta etapa (70-73) memórias algo esquecidas dos dias de Lodger (Repetition, belíssima canção agora recuperada como single) e até dos Tin Machine (Shopping For Girls é uma canção do segundo álbum da banda e supera nesta versão essa leitura original, o que nos deixa a pensar que vale a pena reavaliar um dia o real potencial do material dos Tin Machine, embora para além das abordagens que ficaram fixadas em disco).
Se por um lado este “novo álbum” serve como exemplo da multiplicidade de abordagens possíveis às canções de Bowie (pelo próprio e companheiros) por outro ChangesNowBowie lembra-nos que há muito na obra do músico a merecer a nossa atenção para lá dos clássicos habitualmente recuperados nos “best of” da praxe. Este foi um dos vários lançamentos de Bowie neste semestre. Além da edição digital de Liveandwell.com e de vários picture discs, a “colheita” 2020 incluiu ainda Is It Any Wonder, um EP (editado em vinil) que junta novas leituras de temas clássicos, uma remistura e um inédito absoluto de finais dos anos 90.
“ChangesNowBowie” está para já apenas disponível nas plataformas digitais numa edição da Parlophone. As edições em LP e CD estão agendadas para 20 de junho.

Miguel Noya ” Canciones Intactas”
Quantas vezes a história da música nos é contada por figuras geográfica ou culturalmente colocadas juntos dos epicentros das atenções e dos focos das rotas da divulgação. Habituámo-nos a encontrar focos de invenção exploratória da música eletrónica na Europa continental da segunda metade do século XX (e é um facto), assim como dali emergiram experiências que alastraram à criação “popular”. De uma outra geografia, a norte-americama, emergiu na década de 60 um grupo de compositores que desafiou os cânones e colocou no mapa das atenções um espaço ao qual acabou atribuída a designação de minimalismo… Mas ambos, mesmo em terrenos de vanguarda, estavam perto dos centros de decisão e ação da “cultura” discográfica… A explosão da comunicação digital no século XXI tem permitido (re)descobrir outros pólos de criação para lá destas fronteiras “clássicas”… Artigos em revistas, compilações temáticas e edições históricas estão assim a juntar outras contribuições a uma história que, mesmo partilhando raízes comuns, na verdade gerou mais frentes de crescimento que, em paralelo, desenvolveram (com marcas identitárias que vão do pessoal ao local) outros casos que, assim, nos permitem contar a história dos mesmos períodos mas com muito mais informação (e amplitude cultural).
O venezuelano Miguel Noya é um nome que, se até aqui podia ser conhecido pelos mais interessados e atentos seguidores dos espaços da música eletrónica, agora tem, numa compilação lançada pela Phantom Limb, um cartão de apresentação que nos permite a todos não só (re)descobrir a sua obra como juntar a Venezuela como ponto a considerar no mapa da evolução destes universos da criação musical.
Com uma formação que o fez passar pelo Berklee College of Music e o MIT, onde completou estudos nas áreas de Música Eletrónica e Som Digital, Miguel Noya acabou por se fixar em Caracas, talhando uma carreira como professor ao mesmo tempo que foi criando música, começando a editar discos nos anos 80, alguns apenas em formato de cassete, por vezes lançados em modelos de auto-edição. Estreou-se em 1984 em “Gran Sabana” (editado em LP e hoje uma raridade no circuito do colecionismo). E seguiram-se títulos que foram definindo um percurso onde se cruzam interesses pela música repetitiva (houve já quem o descrevesse como um autor de “minimalismo mântrico”, podendo “Inoculation” ser aqui um bom exemplo), ocasionalmente juntando elementos que culturalmente sugerem alicerces locais (sugestões sonoridades da floresta, como em “Tactil” ou de rituais de povos nativos, como em “Huellas Circulares”), notando-se ainda um gosto em explorar a música num quadro semelhante ao dos autores das esferas ambient da criação eletrónica (neste caso escutar “Aire” ou “Contemplacion”). Por vezes, como se nota em “Parsec”, brota da música uma intensidade efusiva, podemos dizer mesmo dançável, que não será estranha aos caminhos que a música eletrónica então estava igualmente a desenhar na Europa e Estados Unidos. “Parsec”, curiosamente, tem um pé no laboratório experimental e outro na pista de dança… E não seria presença num catálogo (da época) de uma ZTT, ao lado de uns Art Of Noise ou Andrew Poppy.
Todos os exemplos que cito integram o alinhamento do duplo álbum “Canciónes Intactas”, que resulta de uma reunião de peças originalmente gravadas na segunda metade dos anos 80. E que correspondem assim a uma etapa de exploração de possibilidades que integram tanto as primeiras visões ambient levantadas por Brian Eno como as consequências diretas das obras dos primeiros minimalistas. E daí que seja de absoluta relevância a visita às duas partes de Mega Brain Focos que ocupam as faces C e D desta compilação. Peças de duração de 17.30 minutos cada uma, que alargam o sentido contemplativo e o investimento emocional (e envolvente) da repetição para nos fazer mergulhar numa experiência algo transcendental que baralha sentidos de tempo e lugar. “Canciónes Intactas” é, para quem não conhece a obra de Miguel Noya, um portal de acesso à vontade em descobrir mais. Não apenas na sua obra… Mas entre os demais exploradores que a música eletrónica conheceu fora de Dusseldorf, Colónia, Munique, Paris, Lyon, Sheffield, Detroit, Chicago, Nova Iorque ou outros centros que costumam ser referência mais comum (e correta, claro) quando se quer navegar por entre os caminhos destes sons.
“Canciónes Intactas”, de Miguel Noya, está disponível em 2LP e nas plataformas digitais numa edição da Phantom Limb

Philip Glass “Music in 12 Parts (Concert à Paris, 1975)”
Depois de uma série de obras exploratórias nas quais Philip Glass definiu os princípios de uma linguagem muito pessoal – que juntamente com obras de La Monte Young, Terry Riley e Steve Reich definiram, na década de 60, um espaço que acabaria por ser designado por “minimalismo” – o compositor norte-americano encarou a possibilidade de transportar essas mesmas ideias e formas para peças de um âmbito mais alargado no tempo e, a seu tempo, no palco. E se a Einstein On The Beach, a primeira das suas óperas (a que abriu uma trilogia de “retratos” que teria continuação em Satyagraha e Akhnaten) coube a consagração de uma visão pessoal, na verdade foi numa outra peça, igualmente extensa, que Philip Glass alcançou pela primeira vez a conquista de um desafio de grande fôlego. Iniciado em 1971, num projeto para o qual Philip Glass imaginara como possivelmente concluído, Music In 12 Parts é um ciclo de doze peças tocadas em sequência para um ensemble de teclas, metais, flauta e voz que, na verdade, sé em 1974 seria concluído.
A história discográfica de Music in 12 Parts começou, em 1976, com a edição em LP das partes um e dois pela Caroline. Em 1988 a Venture lançou uma caixa de seis LP com a primeira integral da obra (que teria igualmente lançamento em cassete e CD). As partes um a seis tinham já sido gravadas em 1975 (duas delas correspondendo ao LP de 1976), tendo as restantes sido registadas em finais de 1987. Uma nova gravação, captada em várias sessões em Nova Iorque entre março e maio de 1993, surgiu em CD triplo, pela Nonseuch, em 1996. A terceira edição em disco de Music in 12 Parts começou por surgir em ficheiros digitais em 2007 e, depois, conheceu lançamento num CD quádruplo em 2008, pela Orange Mountain Music, a editora do próprio compositor. Este lançamento correspondeu à primeira edição em disco de uma interpretação ao vivo de Music in 12 Parts, gravada em 2006 em Rovereto (Itália). Agora entra em cena uma quarta gravação que, na verdade, corresponde a uma mais antiga captação ao vivo de uma apresentação pública desta obra.
Em 1975, com a obra recentemente concluída, Philip Glass apresentou Music in 12 Parts no estúdio 104 da La Maison de Radio, em Paris. Na ocasião Philip Glass tinha consigo as contribuições de Jon Gibson, Dickie Landry, Michael Riesman, Joan La Barbara and Richard Peck, apresentando assim a obra numa versão para sextet. Dessa gravação, recentemente reencontrada, acaba de surgir uma edição em duplo LP em vinil com as partes 1, 2, 3, 11 e 12.
A face D deste LP duplo inclui um programa de rádio produzido na época no qual é apresentada uma entrevista com Philip Glass (que aqui fala em francês) e gravações de momentos captados durante os ensaios, que tiveram lugar em Nova Iorque, no loft onde então o músico viva e trabalhava. Este programa especial foi produzido pelo musicólogo Daniel Caux, cofundador da Shandar Records. Esta edição surge de material de arquivo e nasce de uma parceria com a ORTF e o Institut National de l’Audiovisuel (INA).
“Music in 12 Parts”, de Philip Glass, está disponível em 2LP e na plataforma Bandcamp (ver aqui) numa edição da Transversales Disques

Prince “Up All Nite With Prince: The One Nite Alone Collection”
À edição do álbum The Rainbow Children (2001) Prince fez seguir uma nova digressão na qual se apresentou com uma banda de formato substancialmente reduzido. Pouco depois apresentava um novo disco de estúdio que tomava como título o sugestivo nome pelo qual se apresentara a digressão: One Nite Alone. Este foi um disco em tudo discreto. Gravado em diversas sessões num intervalo entre o ano 2000 e 2002 não traduz exatamente uma noção de solidão, já que em alguns temas se sente a presença da percussão de John Blackwell. Mas quase tudo resto fica pelas mãos e voz de Prince. O piano é aqui o seu principal companheiro instrumental, não impedindo a presença ocasional de outros teclados. Diferente, portanto, do recentemente editado Piano and a Microphone 1983 (que na verdade surge de gravações de ensaio em estúdio e não como um álbum originalmente planeado para edição).
Mas é sobretudo dos diálogos para voz e piano que vivem as composições aqui registadas, revelando um registo de fragilidade invulgar na obra de Prince e que, além de Piano and a Microphone 1983, pode ter mais um companheiro direto no álbum de inéditos The Truth que incluída dentro do alinhamento do “quádruplo” Crystal Ball, quatro anos antes.
Os temas One Nite Alone, U’re Gonna C Me, Here on Earth e Pearls B4 the Swine tinham sido estreados online em 2001, via NPG Music Club, revelando novas dinâmicas de comunicação da sua música junto dos seus mais atentos seguidores. U’re Gonna C Me surgira, anos depois, com nova versão, no álbum MPL Sound.
Entre uma série de canções de sua autoria o alinhamento de One Nite Alone inclui uma versão de A Case of You, um clásico de Joni Mitchell que, cinco anos depois, seria incluido num disco de tributo à grande cantautora, A Tribute to Joni Mitchell, no qual surgiam ainda nomes como os de Sufjan Stevens, Björk, k.d. lang, Caetano Veloso ou Brad Mehldau. A versão de Prince foi gravada em memória do seu pai, John L. Nelson, e tinha também surgido já no NPG Music Club e, na verdade, já fora gravada por si em estúdio, tanto que surgiria depois no alinhamento de Piano and a Microphone 1983.
O disco é arrebatadoramente belo. Mas a capa de One Night Alone… errr… é horrenda… Pelo que a caixa que agora a “guarda” faz melhor serviço a um belo disco.
Pela altura da edição do álbum de estúdio One Nite Alone havia já espalhados pelos circuitos paralelos muitos bootlegs ao vivo de Prince. E na verdade só depois da viragem do século (e por isso com mais de 20 anos de obra discográfica) o músico resolveu colocar no mercado um álbum live. É certo que havia já em Sign ‘O’ The Times (o filme) um registo captado em palco, embora enquadrado num filme-concerto que não esgotava as suas imagens nos momentos live… (na verdade muito do filme foi captado em filmagens adicionais no soundstage em Paisley Park). Assim como havia vídeos “live” como Prince and the Revolution: Live (de 1985), Lovesexy Live 1 + 2 (1989), Live! − The Sacrifice of Victor (1995) ou Rave Un2 the Year 2000 (2000), entre outros. Mas, até então, nem um registo ao vivo estava editado em disco (oficial)! E é sabido que Prince tinha por hábito registar o áudio das suas atuações (pelo que se imagina também aí a existência de um vasto arquivo a eventualmente explorar no quadro destas novas edições em curso). Mas quando, em 2002, editou pela primeira vez um álbum ao vivo, estava longe de nos dar uma cereja segura para colocar sobre os bolos até aí cozinhados.
Prince poderia ter optado por construir uma coleção de fragmentos das gravações que já tinha em arquivo. Ou até iniciado uma série de lançamentos através dos quais poderia ter dado caução oficial a muitos dos registos ao vivo que já por aí circulavam. No fundo podia ter sugerido um caminho na linha da chamada “bootleg series” de Dylan ou das recentes edições de arquivo dos Rolling Stones. Mas Prince optou, e a escolha tem o valor sublinhado de quem sempre quis não viver das nostalgias de glórias passadas, por mostrar-se com uma gravação do seu presente em palco.
E assim nasceu One Nite Alone… Live. Esta foi uma edição que começou por emergir via NPG Music Club e que só depois se mostrou em vários formatos, juntando um disco (duplo) registado durante uma série de noites da digressão mais recente (a que se apresentava precisamente como One Nite Alone Tour) e um terceiro disco com gravações efetuadas em três concertos aftershow dessa mesma ronda de palcos.
O disco duplo gravado em palco não representa um registo de palco em regime solitário (apesar do título o parecer sugerir). Prince estava em cena acompanhado por Rhonda Smith (baixo), John Blackwell (bateria), Renato Neto (teclas), os saxofones de Candy Dulfer, Maceo Parker e Najee e o trombone de Greg Boyer, apresentando um alinhamento pelo qual tanto surgiam temas mais recentes como clássicos como When U Were Mine, Take Me With U, Raspberry Beret, Diamonds & Pearls, Nothing Compares 2 U, Starfish & Coffee ou Sometimes It Snow In April, alguns deles em novos arranjos. Já One Nite Alone… The Aftershow: It Ain’t Over! (Up Late With Prince & The NPG) traduz momentos de maior informalidade e liberdade, numa série de jams pelas quais passam também temas com história como Alphabet Street ou Girls & Boys, e aqui com Larry Graham no baixo. A concluir este lote de memórias agora reunidas numa caixa comum aqui encontramos em DVD o registo audiovisual de The NPG Club Presents Prince Live at the Aladdin Las Vegas, que capta um concerto registado em dezembro de 2002 e que chegou a conhecer edição avulsa em 2003.
Além dos 4 CD (One Nite Alone… Live é duplo) e do DVD a caixa inclui um booklet com imagens da época e uma coleção de memórias apresentadas na forma de pequenos depoimentos sobretudo assinados por admiradores de Prince que passaram por esta digressão ou integravam o NPG Music Club por estes dias.
“Up All Nite With Prince: The One Nite Alone Collection” é uma caixa de 4CD e um DVD de Prince, editada pela NPG Records e com distribuição pela Sony Music. Os álbuns “One Nite Alone”, “One Nite Alone… Live” e “One Nite Alone… The Aftershow: It Ain’t Over! (Up Late With Prince & The NPG)” têm igualmente edição avulso em vinil e nas plataformas digitais.

Vítor Rua “Electronic Music 1995-2010”
Uma das melhores (re)descobertas que o panorama editorial português nos deu a ouvir neste início de ano transporta-nos, através de uma curadoria, por algumas memórias de criação de música eletrónica que Vítor Rua compôs, gravou e publicou em formatos digitais. Agrupada em suporte de CD, mas disponível também em plataformas digitais, Electronic Music 1995-2010 é ao mesmo tempo um mergulho por um vasto arquivo e, dado o modelo da edição – sobreudo a criação de um disco acompanhado por um artwork que usa caixas pré-usadas e frisa uma noção de materialidade e sustentabilidade – um possível primeiro passo para outros projetos (de reedição e também edição. De resto, ao falar para o GiRA DiSCOS, Vítor Rua deixa uma novidade em primeira mão sobre os Telectu (nada como ler mais abaixo).
Este disco apresenta a Marte Instantânea, uma etiqueta subsidiária da Holuzam e junta num alinhamento comum elementos de Computer Music (1995), Hello, I Am Mister ED (1996), Dance Music (1999) e Telectu Cats (de 2010). Aqui se encontram várias abordagens aos universos (vastos) da música eletrónica que, na verdade, habitam a obra de Vítor Rua desde sempre.
Há caminhos que passam pelas heranças do minimalismo e da música repetitiva, outros que exploram outras formas de moldar sugestões com outras dinâmicas, por vezes hipnóticas, sempre deixando claro o gosto por explorar e por saborear, sobretudo, caminhos de liberdade e de busca de identidade (ou de vários trilhos possíveis dentro de uma mesma identidade). Electronic Music 1995-2010 é uma (re)descoberta saborosa. Muito saborosa mesmo. E, mal terminado o alinhamento, deixa em nós a vontade em continuar a procurar o que ainda possa haver entre os mais de cem discos com lançamento digital que o músico foi editando ao longo dos anos e os inéditos em que tem trabalhado nos últimos tempos… Venham mais volumes. Venham novas edições…
“Electronic Music 1995-2010” de Vítor Rua, está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da Marte Instantânea

Yma Sumac “The Quintessence”
A construção do espaço musical que conhecemos sob a designação “exotica” (que foi título de um álbum de 1957 de Martin Denny, um dos nomes mais ativos neste universo). Apesar das muitas referências culturais habitualmente em jogo – frequentemente oriundas das orlas e das ilhas do Pacífico – esta música tinha mais de construção “fake” do que de expressão de diálogos entre ecos tradicionais e outras linguagens e geografias, aqui de facto algo que mais tarde seria arrumado no espaço da world music. Exotica não é world music… É antes uma construção de ficção. Uma “fake music” que tinha mais em comum com o modo como os filmes de Hollywood se tinham habituado a retratar outros tempos e outras culturas do que com processos de recolha etnomusicológica. E na verdade as origens da ideia recuam a criações que surgiram uns anos antes de o nome ter sido pelo álbum de Martin Denny. Em 1951 o também norte-americano Les Baxter gravara Ritual of The Savage, disco que cruzava elementos de outras músicas e outras geografias, acrescentando até sonoplastia “exótica” com sons de pássaros e sapos… Afinal sugeria-se uma música para estimular o sentido de exotismo de um novo turismo rumo ao Hawai e outras ilhas do Pacífico. Mas ainda um ano antes, e com Les Baxter a bordo, um outro disco abria horizontes para fazer dos anos 50 um terreno aberto a este tipo de visões. Era protagonizado por uma cantora de invulgar extensão vocal, dotada de um rosto de linhas cinematográficas e apresentada por uma narrativa de alma épica… Chamava-se Yma Sumac.
A construção da personagem juntava mitologias que ora contavam que era descendente do último grande imperador Inca ora diziam que era uma dona de casa nova-iorquina que resolvera, pela música, dar outro rumo à sua vida. Na verdade Zoila Augusta Emperatriz Chávarri del Castillo (1922-2008), o seu nome real, era uma cantora peruana que começara a cantar na rádio em 1942 e chegou a gravar uma série de canções folk de passagem pela Argentina por esses dias. Com a família mudara-se para nova-iorque em finais dos anos 40, começando ali a fazer carreira a bordo do Inka Taky Trio. E foi então que, através da Capitol Records, recebeu um convite para gravar a solo.
A estreia em disco como Yma Sumac fez-se em 1950 com um LP (formato ainda recente, lançado pela primeira vez dois anos antes, em 1948). Voice of the Xtabay apresentava seis composições de Moises Vivanco (com quem estava casada) e duas de Lex Baxter, é revelava um festim de exotismo que conciliava uma interpretação à la Hollywood de um sentido de herança pré-colombiana com a presença da música latina. A invulgar extensão vocal de Yma Sumac (que ultrapassa as quatro oitavas), que lhe permitem não apenas o canto mas também um desenho de vocalizações que se tornariam assinatura sua, os arranjos luxuriantes para orquestra e uma presença variada de instrumentos de percussão, criava um alinhamento tão invulgar quanto sedutor. Diferente. Mas estranhamente intrigante. E desde logo capaz de seduzir atenções, valendo-lhe o cognome de “rouxinol dos Andes”…
A criação da figura (e da música) de Yma Sumac precede a designação “exótica” mas na verdade define do que afinal se trata aqui. Outros discos seguiram-se a Voice of the Xtabay, ora sublinhando essa carga de construção andina hollywoodesca, ora visitando com maior protagonismo os espaços da música latina, que entretanto, cativara as pistas de dança ocidentais. Os discos eram acompanhados por textos que valorizavam a narrativa mitológica, juntando ao universo musical e plástico de Yma Sumac todo um conjunto de referências de tempo e geografia pré-colombiana.
A caixa The Quintessence lançada na reta final de 2019 junta, em três CD, os álbuns que Yma Sumac gravou para a Capitol nos anos 50, juntando alguns extras, ora retirados de discos de 78 rotações ora do musical da Broadway Flahooley, de 1951.
Voice of the Xtabay, de 1950, é claramente o mais interessante dos discos de Yma Sumac. O disco define um programa estético que depois tem continuação em frentes que se manifestam nos álbuns seguintes. Por um lado há discos, todos eles sob a direção musical de Moises Vivanco, que aprofundam a mitologia inca (e mais exótica) que ser manifesta em Legend of The Sun Virgin (1952), Inca Taqui (1953) e Legend Of The Jivaro (1957), neste último à orquestra sendo reunida ainda “acompanhamento nativo”, como se lia nas notas na contracapa. Ao mesmo lado Mambo! (1954), gravado com Billy May e a Rico Mambo Orchestra, procurava levar à pista de dança de travo latino alguns sinais já explorados no disco de 1950. Editado em 1959 o álbum Fuego del Ande, novamente com Moises Vicanco, mas com a presença em estúdio da sua Orchestra Tipoca, ensaia aproximações ao folclore andino, sem perder a dimensão mitológica em volta de uma voz que, nove anos depois de Voice of the Xtabay, estava já longe de representar o travo inesperado e exótico de outrora. Os sabores da surpresa tinham migrado para outros lugares… E a própria obra de Yma Sumac mergulhou, progressivamente, num caminho cada vez mais distante das grandes atenções.
A caixa da Cherry Red representa a mais bem arrumada coleção de memórias de Yma Sumac… Basta espreitar a sua página no Spotify para notar um caos desordenado de gravações e reedições… Pena, contudo, que salvo o texto de abertura, o booklet reproduza apenas os textos dos discos originais (sem deixar evidente que o faz), perdendo uma oportunidade para registar assim um ensaio biográfico e musical sobre uma das vozes mais invulgares que os discos deram a escutar nos anos 50.
“The Quintessence”, de Yma Sumac, é uma caixa de 3CD disponível em edição pela Cherry Red.