Desapareceu, aos 91 anos, um dos nomes mais aclamados da história da música ao serviço do cinema. A sua obra abarcou contudo muitos outros desafios, entre os quais um grupo de música de vanguarda e uma parceria com os Pet Shop Boys. Texto: Nuno Galopim

São raros os compositores com trabalho sobretudo focado no universo do cinema cuja menção do nome automaticamente desperta em muitos a memória imediata de pelo menos uma melodia (possivelmente mais do que uma). Mais ainda raros são aqueles compositores cuja obra muitas vezes adquire protagonismo tal que representa em si a referência, ultrapassando o protagonismo dos realizadores, argumentistas, atores e tantos outros que fazem um filme. Ennio Morricone (1928-2020) ajustava-se que nem uma luva a estas duas descrições. Deixou-nos, vítima de uma queda, aos 91 anos. Mas connosco ficou uma obra vasta, que cruzou gerações e fronteiras, dele fazendo uma referência global.
O pai era músico e o jovem Ennio Morricone, nascido em Roma, começou cedo a aprender a tocar trompete, acabando mesmo por cumprir uma formação (com bons resultados) que o fez passar pela Academia de Santa Cecília. Ainda muito jovem foi escolhido para tocar num teatro de ópera, e ao mesmo tempo que terminava os estudos assinou primeiras peças que expressavam ecos de um ensino clássico. O trabalho levou-o por um lado a assinar arranjos e, depois, compor canções, para os artistas da rádio e, depois, da televisão nos anos 50, ganhando dinheiro extra a tocar numa banda de jazz. O raro ecletismo seria amplificado mais tarde, já na década de 70, quando militou num grupo de vanguarda (o Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza, que chegou a editar pela Deutsche Grammophon).
O cinema começou a entrar no seu trabalho ainda nos anos 50, com alguns desafios não creditados. A estreia, com nome no ecrã, chegou apenas em 1961. Os trabalhos seguiram-se com vários realizadores, mas Morriconne não deixou de trabalhar para as vozes da canção italiana, e em 1964 chegou mesmo a passar por San Remo, tendo co-assinado Ogni Folta, que Paul Anka ali estreou nesse ano. Mas 1964 foi o ano do seu “Ipiranga”. Desafiado pelo antigo colega de escola Sérgio Leone, que tinha gostado da música que Morricone havia composto para alguns westerns italianos recentes, chamou-o para dar a “voz” a Por um Punhado de Dólares. O mundo escutou-o. E não só aceitou a sua visão como uma nova linguagem capaz de moldar os ambientes dos filmes sobre o velho Oeste, como nele reconheceu um talento com potencialidades bem para lá das fronteiras de género. É claro que foram os western spahgetti (e aqui vale a pena sublinhar o impacte ainda maior de O Bom, O Mau e o Vilão) que vincaram primeiro o impacte internacional da música de Morricone. Mas foi a sua associação a outros realizadores, outras filmografias e outros desafio, que o libertou e levou mais longe. Se o western spaghetti o deu a conhecer globalmente, a música de filmes como Dias do Paraíso de Terrence Mallick (1978), A Gaiola das Malucas (1978) de Edouard Molinaro, A Missão (1986) de Roland Joffé, Frenético (1988) de Roman Polanski ou Ata-me (1990) de Pedro Almodóvar, cimentaram o tel ecletismo que sempre cultivara. Um ecletismo que não o impediu nunca de manter uma firme relação com o cinema e a música italiana, traços de identidade que na verdade fixou de forma magistral na música de Era Uma Vez na América (1984), do seu velho parceiro Sergio Leone.
Ao cinema dos anos 70, 80 e 90 juntou novos trabalhos para televisão (em séries como Espaço 1999, para a qual contribuiu em alguns episódios, Marco Polo ou O Polvo) e novas experiências na canção. E aí tanto foi co-autor de It Couldn’t Happen Here (1987) dos Pet Shop Boys como escreveu para Dulce Pontes a canção Brisa do Coração, (1995), que integra a banda sonora da adaptação ao cinema de Afirma Pereira, um romance de Antonio Tabucchi.
Apesar de gostar de se fazer à estrada (e ainda recentemente tinha protagonizado uma digressão colossal), e da multiplicidade de trabalhos que foi assumindo, Ennio Morricone nunca deixou de ter no cinema o epicentro do seu trabalho. Desenvolveu relacionamentos próximos com vários realizadores, entre os quais não apenas Sergio Leone, mas também Giuseppe Tornatore, Bernardo Bertolucci, Dario Argento ou Brian de Palma. E já no século XXI conheceu em Quentin Tarantino um parceiro entusiasmado. Para ele, que tinha já usado velhas composições suas em filmes anteriores, não só compôs Ancora Qui para o filme Django Libertado (2012) como, acabou por assinar a partitura de Os Oito Odiados (2016), pelo qual finalmente venceu um Oscar para Melhor Banda Sonora, nove anos depois de ter recebido um prémio honorário dado pela mesma Academia.