Passam hoje 40 anos sobre a edição de “Closer”, segundo e último disco de estúdio dos Joy Division, gravado poucas semanas antes do trágico fim que Ian Curtis a si chamou. Estaria esse fim desenhado nas entrelinhas. Ou é a mitologia que agora o diz? Texto: Nuno Galopim

Em julho de 1980 a figura cativante e sempre intrigante de Ian Curtis, que meses antes subia aos palcos e gravara um novo álbum com os Joy Division, começava a dar lugar à memória de um mito. O suicídio, inesperado para alguns, mas talvez já sugerido entre as canções que acabara de gravar (e aqui a fronteira entre a realidade e a mitologia dilui-se), tinha ditado, a 18 de maio de 1980, um fim abrupto para a sua vida a poucos meses de completar os 24 anos. O músico visionário e autor expressivo, de comportamento por vezes aparentemente distante, era, contudo, um jovem comum. Um cidadão suburbano com vida feita na periferia de Manchester, melómano profundo, funcionário público por obrigação, mas finalmente músico por sonho concretizado a bordo da aventura que viveu com os Joy Division. Desde cedo revelou ter uma admiração pelos ícones pop que morte chamara cedo. Morte que estava também presente nas suas canções. A sua mulher, Deborah Curtis, afirmaria até mais tarde que, caso tivesse acompanhado em estúdio a gravação do álbum, Closer, registado poucas semanas antes do suicídio de Ian, e tivesse ali escutado as canções e focado atenção sobre as letras, teria descodificado o estado de depressão e angústia profunda em que o músico vivia, e poderia eventualmente evitado o desfecho que a história registou. Apesar da carta que deixou à mulher, a morte de Ian Curtis não tem um motivo concreto explicado. Terá sido o degradar terminal de um casamento então já à beira do desmembramento? O reforçado impulso suicida vincado pela epilepsia que lhe foi diagnosticada em 1978? O avolumar da agenda de espectáculos (que amplificou a regularidade e intensidade dos ataques)? Algum desconforto eventualmente levantado pela relação que tinha então com a jovem belga Annik Honoré? A iminência de uma digressão americana e de todo um potencial futuro mais exigente? Um acumular destas e outras razões? Sabemos apenas o desfecho que a si chamou… E de certa maneira o segundo (e último) álbum dos Joy Division corresponde às expressões poéticas que uma alma atormentada fixou em canções pouco antes de decidir deixar-nos.
Intrinsecamente ligada à figura, voz e escrita de Ian Curtis, os Joy Division foram uma das mais marcantes forças criativas da sua geração e a sua obra e visão abriram a porta à década de 80. Formados na ressaca da revolução punk, avessos à luminosidade festiva (e muitas vezes escapista) da new wave que se lhe seguiu, foram a primeira banda que a conseguir captar, não a raiva e energia, mas antes a ambiência e sentido de identidade do punk e projectá-los num espaço diferente que abriu alas ao desenho de uma atitude melancólica que dominaria a cena pop/rock alternativa na primeira metade de 80. Apesar das manifestações primeiras de uma certa desordem formal característica do punk entre as suas primeiras atuações e gravações, a depuração de ideias e linhas, o aflorar de um ideário urbano, tortuoso e solitário, feito de tempestades interiores, a visão de um som trabalhado em estúdio com o produtor Martin Hannett e a posterior entrada em cena de sintetizadores, fizeram dos Joy Division um dos mais entusiasmantes laboratórios de reinvenção pop que a Inglaterra conheceu na passagem de 70 para 80.
O impacte do álbum de estreia Unknown Pleasures, editado em junho de 1979, tinha elevado a fasquia das responsabilidades. O grupo passara a ser um “emprego” em full time, com agenda intensa de atuações. A intensidade da agenda de concertos não esconde uma cada vez mais presente manifestação dos sinais de epilepsia. O encontro com Annik (em outubro de 79), o desconforto que a relação causa entre a banda e a solidão e afastamento que se manifestam no regresso a casa corroem aqueles dias… Em Março de 1980 o grupo regressa a estúdio para gravar um segundo álbum. Martin Hannett está novamente na cadeira de produção, e volta a interferir na condução da atmosfera dominante. Ian está motivado. Inspirado, entregue à criação. Mas a sua escrita revela-se mais gélida que nunca, implacável nas palavras que aparentemente lança contra si, contra o futuro. Uma premonição? Isolation, uma das faixas centrais do alinhamento, mostra claramente esse distanciamento… Se o álbum anterior havia definido um rumo, este novo explode em todas as direcções, numa erupção espantosa de criatividade bem estruturada. Os teclados afloram com maior evidência, acrescentando ferramentas dramáticas ao arranjo das melhores canções da obra da banda. O vazio explorado pelas palavras é aqui o oposto evidente da massa sonora e da grandiosidade formal que a música desenha à sua volta..
Um mês depois de gravado Closer, Ian Curtis tomou uma overdose da medicação contra a epilepsia. Depois do tratamento de urgência Ian é visto por um psiquiatra que conclui que o paciente não é potencial suicida! Mas Ian chegara mesmo a deixar uma primeira nota de suicídio à mulher, que Deborah não divulgou nem aos amigos nem aos familiares. No seu livro, Carícias Distantes, contaria mais tarde que se sentiu marginalizada pelo marido e banda, e que desde Unknown Pleasures não conhecia as canções nem lia as letras. Não conhecia a nova realidade da natureza profunda da alma de Ian…
Aconselham-no a uma pausa. Depois de uma discussão conjugal Ian acaba por ficar por uns dias na casa de Tony Wilson, o “patrão” da editora, a Factory. Mas nem ele nem a sua mulher imaginam a verdadeira dimensão da depressão que já assombrava o músico, agravada certamente pela progressiva degradação da vida familiar (que é retratada no single Love Will Tear Us Apart que então acabara de gravar, embora só conhecesse edição já depois da sua morte). Um dia, a caminho de uma consulta, Ian falou com Deborah sobre o seu descontentamento para com a indústria musical. Cintou-lhe que tinha alcançado a sua realização pessoal com as edições de Transmission e de UnknownPleasures e que tanto os ainda inéditos Closer como LoveWillTear Us Apart não faziam já parte das suas aspirações. Segundo Deborah, Ian desejava abandonar a banda. Terá dito o mesmo a Stephen Morris, mas este julgou que o vocalista se queria mudar para outro lugar. Decades (de Closer) já havia levantado um debate interior sobre a futilidade da vida numa banda (e da vida em geral)…
Quarenta anos depois de Closer podemos olhar para este disco não apenas como o segundo capítulo na construção de uma visão que estava a mudar modos de encarar as linguagens da canção pop/rock e que lançava um mundo de potencialidades (que na verdade seriam encarnadas já pelos New Order, a banda que nasce do fim dos Joy Division). Ao mesmo tempo encontramos aqui o testamento de uma alma dorida que entre estas canções deixou uma nota aos que ficaram para o escutar. Era como a sugestão de um fim… Ou pelo menos é assim que a mitologia hoje o parece encarar… Era contudo um fim com possibilidades de futuro pela frente. Um futuro ao qual, todavia, ele não queria pertencer. Mas o certo é que, 40 anos depois, sabemos que muito desse futuro lhe ficou a dever.
“Closer”, dos Joy Division, acaba de conhecer uma nova reedição comemorativa em vinil, pela Warner Music
Ao mesmo tempo são reeditados os máxi-singles (também em vinil), de Transmission, Love Will Tear Us Apart e Atmosphere.