Mais interessante do que a trama ligeira de amores e mal entendidos com estudantes de Coimbra, “Capas Negras” (1947) usa o trabalho da câmara e da montagem para por vezes sugerir outros modos de vermos Amália Rodrigues quando canta. Texto: Nuno Galopim

Antes de uma etapa em que o disco se transformaria num dos seus mais importantes espaços de comunicação, a carreira de Amália na década de 40 começou por ganhar forma em casas de fado, rapidamente chegou aos palcos do teatro e cedo iniciou também uma agenda com exposição internacional. Ao fim de alguns anos, já sob um sólido um estatuto de grande popularidade (nacional), coube ao cinema o papel de poder levar a sua voz e imagem a outros desafios (e plateias). Tal como sucedia com nomes como os de Sara Montiel, Charles Trenet ou, do lado de lá do Atlântico, Bing Crosby, Frank Sinatra ou Judy Garland, o cinema português tinha já compreendido o enorme potencial que a música poderia trazer para a equação de sucesso de um filme. Assim como se notara já como uma carreira na música (e por essa altura Beatriz Costa tinha já editado alguns discos de 78 rotações) podia amplificar a sua capacidade de comunicação através do cinema. O encontro era vantajoso para ambos os universos. E com Amália claramente já reconhecida como uma força maior da música que então se fazia entre nós, o mundo do cinema não tardou em chamá-la. E logo em 1947, o ano da sua estreia no grande ecrã, Amália foi estrela em dois filmes. Um deles, Fado: História de Uma Cantadeira, de Perdigão Queiroga, sugeria algumas afinidades maiores com a sua própria história pessoal (apesar de claras diferenças e de não pretender sequer ser um bipoic). Meses antes a sua estreia tinha acontecido em Capas Negras, filme de Armando de Miranda no qual uma vez mais a encontramos num papel com ligações à sua carreira como fadista, embora aqui a Maria Lisboa que interpreta não cante profissionalmente.
O título do filme não esconde que de Coimbra e de universitários trata uma narrativa que se desenrola entre os membros de uma república de estudantes (a República do Rás-te-parta) e não dispensa os condimentos habitualmente associados às caracterizações da vida académica. Mais do que vivida entre os espaços da Universidade, a trama foca-se nos amores dos estudantes (sempre homens) com raparigas da cidade. Se por um lado um dos maiores valores de Capas Negras é a presença de alguns fados cantados por Amália Rodrigues e também algum protagonismo musical partilhado com Alberto Ribeiro (o outro proragonista), outro dos motivos de interesse pra hoje (re)ver Capas Negras é o modo como o filme fixa ecos de uma velha ordem moral bafienta que caracterizava o Portugal de então. A trama, em si, tem tanto interesse como a casca de uma cebola: nada espessa, quebradiça e sem sabor…
O melhor de Capas Negras é mesmo Amália. Tal como nota Tiago Rodrigues no livro Ver Amália (no qual aborda a sua obra no cinema), a caracterização mostra Amália com um rosto diferente daquele que era então o de uma fadista profissional segura de si. De resto, mais do que em, Fado: História de Uma Cantadeira, encontramos aqui Amália num papel que não procura replicar o seu quotidiano nem a imagem habitualmente a si associada. Nesse outro filme, do mesmo ano, encontraremos já sinais da ideia de construção de um ícone, usando o potencial do cinema em favor da fixação de uma imagem que poderia transcender o espaço do ecrã. Mais do que a forma de mostrar Amália como uma figura caracterizada e vestida de forma diferente da que então se via nos palcos do teatro, o filme revela (como o faria também Fado: História de Uma Cantadeira) modos de olhar sobre a cantora que um palco ou uma casa de fados não permitiriam ver. O trabalho da câmara e da montagem, em cenas como aquela em que canta ao mesmo tempo que escreve uma carta ou numa outra em que caminha, a cantar, de costas voltadas para o público, revelam como o cinema podia juntar novos modos de ver Amália. E essas são, aqui, as maiores contribuições de Capas Negras na história da sua obra. Essas e o sucesso que então nasceu com Não Sei Porque Te Foste Embora, com música de Frederico Valério, um nome de absoluta referência no percurso de Amália.