Um filme de uma atuação solitária, com nada mais senão um piano e Nick Cave na grande sala (vazia de público) do Alexadra Palace, teve ontem transmissão ‘online’. Estas imagens farão um dia parte das memórias do sentido de soldião que vivemos em 2020. Texto: Nuno Galopim
Quando, daqui a uns anos, alguém procurar como ficou fixada a memória de 2020, entre as peças a chamar estará Idiot Prayer de Nick Cave. Mais do que o facto de ser uma transmissão online de uma atuação a solo, a solidão de uma vasta sala de espetáculos sem mais ninguém além de Nick Cave (senão a equipa que captava imagens e som), onde o silêncio irrompia ao fim de cada da canção, traduzia a extrema solidão que um tempo de distanciamento físico (que não é exatamente sinónimo do “distanciamento social” tantas vezes referido) inscreverá numa etapa difícil, e pelos vistos, longa, das nossas vidas.
Ver Nick Cave a solo, apenas acompanhado por um piano, não é de todo uma surpresa inesperada, bastando para tal notar como a relação entre voz e o piano se tem vindo a desenhar desde que, em 1990, o álbum The Good Son abriu outros horizontes à sua demanda como autor e cantor. O alinhamento escolhido foi certeiro ao evitar de uma omnipresença do tom mais sombrio dos dois últimos álbuns, ambos assombrados pela perda de um dos seus filhos. Skeleton Tree e Ghosteen passaram por Idiot Prayer. Mas as preces ao piano na verdade abordaram mais temas, encarnaram outras fontes de dor e melancolia, cruzaram mais discos, mais etapas de vida. Desde os tempos de Stranger Than Kindness e Sad Waters até ao presente (com a estreia de Ethanasia, uma nova canção) não deixando de fora os Grinderman, num clima de placidez solitária que respirou com maior fulgor (inevitavelmente) ao som de The Mercy Seat ou Jubilee Street, Nick Cave apresentou um alinhamento de 21 canções digno de uma tour a solo por salas eleitas pelo mundo fora. Talvez o faça um dia, quem sabe… A sua interação mais direta com admiradores através do seu site e a série recente de “atuações” Conversations With Nick Cave estarão certamente na raiz do caminho que o levou a esta partilha mais solitária. Mas antes mesmo de o podermos ver, de facto, a solo, com um piano (num programa na linha deste e não de conversa e canções), certamente a sua prioridade será a de regressar aos palcos devidamente acompanhado pelos Bad Seeds. Cá o esperamos em 2021…
Sobre Idiot Prayer vale ainda a pena falar do projeto como ideia e como momento de cinema… Numa altura em que se debatem justificadamente formatos de viabilização do trabalho para os músicos (e equipas técnicas que os acompanham), um modelo de atuação como a que Nick Cave apresentou mostrou uma aposta inteligente e potencialmente exequível (talvez nem sempre com um budget da mesma ordem). O “programa” estava alojado num servidor e podia ser visto uma única vez (mediante compra prévia de um bilhete), com arranque a uma hora determinada (na Europa podíamos entrar a partir das 20.00 e creio que até às 21.00 era possível iniciar o visionamento). Não havia repetições. Nem pausas. Aí a experiência era mais próxima da que o tempo nos dá naturalmente a saborear numa sala de espetáculos. A diferença aqui era o facto de apenas a transmissão ser um “direto”, já que todo o programa tinha sido filmado umas semanas antes na sala (vazia) do Alexandra Palace, em Londres. E aí vale a pena sublinhar o trabalho notável de luz (com soluções variadas entre as canções, sem que tal parecesse um catálogo de possibilidades). E com uma realização contida, eficaz e pouco intrusiva. Dava-nos espaço para ser espectadores como numa sala, mesmo com um ocasional plano mais aproximado… Na verdade, filmado pelo diretor de fotografia irlandês Robbie Ryan, Nick Cave é aqui protagonista de um belo filme. Só não lhe chamo filme-concerto porque esse modelo pede plateia e a natural interação emotiva que se estabelece entre o músico e o público. Aqui tínhamos um filme de uma personagem só num espaço fechado. Um huis clos, sim… E em vez de um monólogo falado, a figura central cantou-nos. Esperemos que o home vídeo seja agora o destino futuro destas imagens. Um DVD ou um Blu-ray serão bemvindos.
Um pensamento